Paranoia é uma doença que se disseminou na sociedade brasileira

Seu Gervásio vive a portas e janelas fechadas. Tranca e retranca tudo o que pode com tudo o que tem. Tem medo de ladrão, mas não tanto quanto tem de comunista. Ele sabe, sabe-se lá como, que eles estão por aí. No escuro. Na espreita. À espera de um vacilo seu para torná-lo venezuelano, gay ou ateu. Eles são traiçoeiros. Dissimulados. Terrivelmente onipresentes. Os vê na tv, no rádio e na internet. Em todo lugar tentam colocar coisas comunistas na sua cabeça. Por isso trancou a mente. Pensa em trancar também os ouvidos, mas não sabe como.

“A rua te deixa esperto. Aqui é a lei do cão que vale. Você mata ou morre.”. A ladainha é a mesma sempre que um policial novo entra na viatura. Anderson é das antigas. E gosta de posar de sábio das coisas que aprendeu na prática. Anda atento às pessoas perigosas, que acredita não serem poucas. Aprendeu a adivinhar o perigo, só pela cara, pele e jeito dos suspeitos. “Olha aquele ali. Olha o jeito dele. Olha a marra. É vagabundo, com certeza.”. Vagabundo não tem direito de reclamar. Não pode querer dignidade. Se reclama, apanha. Se reage, morre. Anderson não dá mole para o perigo.

Ana Amélia foi parar na política quase que por acaso. Não era o projeto pelo qual se esforçava na vida. Apareceu na tv um dia e chamou a atenção. Gostaram dela. Chamaram novamente. Ficou popular, com fama de sensata. Sabe improvisar. Pensa rápido e, sobretudo, tem coragem. “Não pensa em se candidatar?”. “Por que não?”, pensou. Candidatou-se. Elegeu-se. Na campanha, percebeu que muitos se aproximavam dela querendo alguma coisa. “Se me der um cargo, eu arranjo mil votos para você.”. Quase ninguém queria discutir ideias, que Ana Amélia tinha aos montes. Eleita, percebeu que o mandato é a continuação da campanha, só que de outro jeito. Sempre querem algo dela. Cada um que entra pela porta, já sabe: vai pedir algo, impor algo ou acabar com ela. Desconfiança virou seu mantra. Seu princípio para enfrentar o mar de mesquinharias que lhe consome o que resta da sensatez.

A história sempre encantou Rogério. Imaginava ensiná-la como quem conta um romance. Nos seus sonhos, a sala de aula seria teatro para interpretar a aventura humana através do tempo para plateias jovens e encantadas. Só o que se realizou foi a juventude da plateia. Suas histórias sobre a história não interessavam a ninguém. Na escola pública, entendeu logo que a história que tinha para contar não era como as histórias dos alunos. Parecia narrativa de outra gente. Feita para outra gente. Demorou a aceitar que não entendia a periferia onde ensinava. Atento ao passado, descuidou-se do presente.

Foi para uma escola particular. Maior salário e, quem sabe, maior interesse do público. Nem bem uma coisa, nem outra. Pior. Passou a ser vigiado. Tido como corruptor da juventude. Doutrinador político apenas por dizer que houve uma revolução na Rússia de antigamente. Por medo da demissão ou de linchamento virtual, passou a policiar-se. Suas aulas não são mais interpretações teatrais das histórias da história. Tornaram-se palavras ditas na medida dos conceitos e datas, como um tedioso discurso dito por dizer, sem nenhuma preocupação com encantamento ou mesmo entendimento. Foge das perguntas e da curiosidade dos alunos. Aprendeu com sua história que a beleza da história não encanta uma gente já tão desencantada de seu presente.

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Ilustração: Mihai Cauli

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