A reforma no código eleitoral reforça ainda mais as desigualdades no Brasil

Ilustração: Mihai Cauli

Um dos maiores desafios a ser enfrentado pela legislação eleitoral dos países democráticos é a introdução de instrumentos e procedimentos que forneçam a devida inclusão de proteção aos direitos fundamentais dos grupos vulnerabilizados ou maiorias minorizadas (SANTOS,2020). Embora o Código Eleitoral vigente tenha sido promulgado em 1965 como prestidigitação da ditadura militar, desde que estabelecidas as bases do regime democrático, têm sido periódicas as mudanças nas leis que compõem o arcabouço normativo eleitoral. O Projeto de Lei Complementar 112/2021 se apresenta como um novo Código Eleitoral e propõe uma consolidação dessa legislação suplementar, além de algumas modificações no sistema atual.

No mesmo sentido, a Proposta de Emenda Constitucional 28, aprovada pelo Senado Federal, traz em seu bojo alterações para fins de reforma político-eleitoral. O objetivo deste artigo é chamar atenção para essas novidades, aprovadas na Câmara dos Deputados e, no Senado Federal, sem a devida discussão entre os congressistas, uma vez que no Projeto de Lei foi preterido o rito interno das Comissões e, reitera-se, que as duas proposições legislativas foram aceitas sem a necessária discussão junto à sociedade civil.

Em especial, este breve texto tem a intenção de destacar os artigos que versam a respeito da representação de mulheres e mulheres negras, bem como a omissão legislativa que tem como causa a ilusória ideia de universalidade e, como consequência, a ausência de igualdade material.

Como um dos objetivos deste texto, cabe ressaltar que, diante da omissão legislativa, em relação à inclusão de ações afirmativas de gênero e raça na legislação eleitoral, as decisões judiciais dos tribunais superiores, nos últimos anos, têm tido um importante e pioneiro papel no sentido de estabelecerem medidas compensatórias voltadas a aliviar um passado discriminatório (PIOVESAN, 2005). São essas decisões que servirão de parâmetro para a análise aqui apresentada sob a nova legislação, pois acreditamos que qualquer modificação deve contribuir para esse processo de inclusão e acesso, e não para obstaculizar-lo ou fazê-lo retroceder.

Nossas conclusões são que, sob essa perspectiva, as inovações inseridas no Código e na Constituição são incipientes, uma vez que passam ao largo do princípio da interseccionalidade, como fonte de observação de raça e gênero na construção dos artigos referentes às tutelas de grupos pertencentes à minoria não demográfica.

Questões formais

Sobre a tramitação do PLP 121/2021, no que tange à forma, urge ressaltar que, de acordo com o art. 34, I, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), seria necessário parecer de uma Comissão Especial para esse fim, além de toda regulamentação já prevista para a dinâmica de debates, envio de emendas, discussões, obstruções e demais manifestações legislativas possíveis no rito para projetos de códigos, regulados a partir do art. 205 até o art. 211 do RICD.

Contudo, o presidente da Câmara, o deputado federal Arthur Lira, nomeou, de forma unilateral e sem observância do critério da proporcionalidade partidária, um Grupo de Trabalho, constituído por 15 integrantes, com a finalidade de organizar e construir o novo Código Eleitoral, o que abala frontalmente o caráter democrático do processo legislativo democrático.

Com a decisão da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, que aprovou requerimento de urgência para tramitação do projeto de lei, foi impetrado, no Supremo Tribunal Federal, por integrantes dos partidos PODEMOS, NOVO e PSB, o Mandado de Segurança nº 38.199, de relatoria do ministro Dias Toffoli. Naquela ocasião, a decisão compreendeu que o rito estabelecido, bem como toda matéria interna corporis, estipulada pelo Regimento interno daquele poder, não permitiria intervenção judiciária, o que gerou o prosseguimento das ações do Grupo de Trabalho na tramitação do projeto.

Originariamente apresentada na Câmara dos Deputados e aprovada pelo Senado Federal, a PEC 28 acrescenta dispositivo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e altera a Constituição Federal, para fins de reforma político-eleitoral. No Senado, a proposta inicial foi encaminhada para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em 19/08/2021 e, sob a relatoria da senadora Simone Tebet, foi aprovada em 22/09/2021.

Um ponto tangencial entre a PL 121/2021 e a PEC 28 foi a inclusão da contagem em dobro para fins de distribuição do Fundo Partidário (FP) e Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para mulheres ou candidatos negros com votos recebidos para a Câmara dos Deputados nas eleições realizadas entre 2022 a 2030. Sobre isso, serão destacados alguns pontos a respeito das duas proposições com o intuito de verificar possíveis incongruências ou choques em sua aplicação.

Retrocessos do PL: a interseção de raça e gênero “esquecida”

Fruto de uma construção histórica e social, as mulheres negras fazem parte de um grupo marginalizado da vida política brasileira. Do contexto de racismo institucional e estrutural, decorre o desnível, em relação às mulheres brancas, em termos de capital político, econômico e social. Sobre isso, ressalta-se que a maioria das mulheres brancas eleitas são herdeiras de pelo menos um dos aludidos capitais (OLIVEIRA, 2020). Portanto, é imprescindível, no que tange à igualdade, ao se falar de gênero, que seja falado das especificidades geradas a partir da raça das candidaturas. Sendo a universalidade, neste caso, excludente.

É notória a necessidade de recursos financeiros para a possibilidade de realização de uma candidatura eleitoral. Sobre isso, no que tange ao direito de antena e ao financiamento das candidaturas, o projeto legislativo contempla as decisões judiciais da ADI 5617, decidida pelo STF, em 15/03/2018, que equiparou o patamar legal mínimo de candidaturas de gênero, disposto no art. 10, § 3º da Lei nº 9.504/97, ao mesmo percentual de Recursos do Fundo Partidário. Ademais, a Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000, julgada pelo TSE em 22/05/2018, a qual estendeu esse entendimento para a partilha dos recursos oriundos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), prevista nos artigos 16-C e 16-D, da Lei das Eleições, além do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão, insertos no art. 47 e seguintes também do mesmo diploma legal.

Com relação às candidaturas de mulheres negras, cabe citar a consulta do TSE nº 06000306-47 e a ADPF 738, que determinou, no ano de 2020, que os recursos públicos advindos do Fundo Partidário (FP), do FEFC e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, em razão das cotas de gênero, deveriam ser repartidos entre mulheres negras e brancas, na exata proporção das candidaturas de mulheres brancas e negras. Portanto, se existissem 20% de mulheres negras e 10% de mulheres brancas, de acordo com aquela decisão, o financiamento seguiria na mesma proporção. Percebe-se, aqui, a delicadeza da inclusão do critério da interseccionalidade ao caso, tutelando, além do gênero, a especificidade guardada à raça.

No que diz respeito às candidaturas de mulheres, o projeto vai ao encontro das decisões citadas acerca da distribuição do financiamento partidário e do FEFC, respeitando o percentual mínimo de 30% para essas candidaturas. Além disso, inclui a observância da proporcionalidade desses recursos às candidaturas de pessoas negras, igualmente previstas nas decisões judiciais.

  • Art. 380. Os recursos do Fundo Partidário e do FEFC serão aplicados nas campanhas eleitorais, observadas as seguintes disposições: IV – os partidos políticos devem destinar, no mínimo, 30% (trinta por cento) para aplicação nas campanhas de suas candidatas, observada ainda a distribuição proporcional às campanhas de candidatas e de candidatos negros: a) do montante do FEFC recebido pelo Diretório Nacional; b) dos gastos totais contratados nas campanhas eleitorais com recursos do Fundo Partidário em cada esfera partidária;

Importante mencionar as diretrizes de aplicação decididas pelo STF, em 2020, na complementação da liminar deferida na ADPF 738, sobre a forma de distribuição desses recursos na candidatura de homens e mulheres negras. A liminar deixa clara a interdição do uso do montante destinado a candidaturas femininas, para o financiamento de homens negros. Essa ressalva é importante, haja vista a possibilidade de que a redação do artigo acima citado possa causar a impressão dessa sobreposição em virtude do uso da conjunção “e”.

Ao analisar o artigo 380, portanto, compreende-se que houve uma harmonização entre as diretrizes estipuladas judicialmente com a previsão legal do projeto. Sobre esse ponto específico, cabe lembrar que a distribuição dos recursos do Fundo Partidário está diretamente ligada aos requisitos constitucionais acerca da proporcionalidade de votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados e, de acordo com o artigo 65 do projeto, haverá o cômputo em dobro dos votos dados a mulheres, negros e indígenas.

Sobre a distribuição do FEFC, que possui critérios de distribuição específicos, o art. 379, §5º, trata que será computado em dobro os mandatos conquistados pelo partido por mulheres e negras, excluindo os indígenas do recebimento deste recurso. No entanto, embora a previsão do art. 379 pareça boa, ela não é. A oportunidade de legislar é a possibilidade de trazer à superfície os fatos sociais que precisam ser regulados e incluídos com a devida eficácia. Inicialmente o dispositivo peca ao citar a palavra “sexo” no lugar de “gênero”, uma vez que não há mais espaços para a discriminação e invisilização de pessoas LGBQTIA+ , principalmente na tutela de seus direito fundamental de igualdade no acesso ao poder.

Além disso, no Brasil, os negros são 55% da população e a mulher negra representa 28% desse grupo, sendo, portanto, o maior grupo demográfico no Brasil. Entretanto, a ocupação dessas sujeitas nas cadeiras do Poder Legislativo nacional não corresponde a mais de 2,5% (13 eleitas) na Câmara dos Deputados, o que demonstra a disparidade entre essas realidades e a necessidade de interferência estatal, por meio de ações afirmativas, a fim de que seja garantida a mudança progressiva deste cenário.

Desta forma, o cômputo em dobro dos votos (no caso do Fundo Partidário) ou dos mandatos (no caso do FEFC), previsto no art. 379, se demonstra medida reparatória insuficiente, pois, conforme se dessume do argumento aqui exposto, não observa a sobreposição de opressões de gênero e raça existente na sociedade.

Incoerências da PL 121/2021 com a PEC 28

A igualdade como objetivo constitucional (GOMES,2005) exige do Estado um papel distinto da neutralidade e, que tenha como objetivo, a criação de mecanismos capazes de diminuir a distância das minorias demográficas do poder. Neste sentido, a PEC 28 altera o art. 2º da ADCT com o seguinte texto:

  • Art. 2º Para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados nas eleições realizadas de 2022 a 2030 serão contados em dobro.
  • Parágrafo único. A contagem em dobro de votos a que se refere o caput somente se aplica uma única vez.

Não se pode duvidar da importância da inclusão deste artigo na Constituição, porém, é notória a sua insuficiência e a dificuldade de coerência entre ele e o texto da PLC 121/2021. Sobre a insuficiência do artigo, é importante reportar ao tema da interseccionalidade de opressões, já citado anteriormente.

Com relação à falta de coerência, ela consiste no fato de que o projeto do novo código eleitoral, em relação aos grupos minorizados, trata de forma distinta a distribuição dos fundos (FP e FEFC), enquanto o novo texto constitucional unifica essa distribuição. De acordo com o projeto legislativo, para a divisão do FP seriam “contados em dobro os votos dados a mulheres, negros ou indígenas”; enquanto que na divisão do FEFC, “serão contabilizados em dobro os mandatos conquistados por mulheres e negros”. Ocorre que o texto constitucional dispõe que os dois fundos trabalharão com o requisito dos votos recebidos, desconsiderando, frontalmente, o texto do PLC aprovado na Câmara dos deputados, que utiliza os mandatos como critério de contagem em dobro.

Além disso, o texto constitucional determina que a contagem dos votos em dobro será, exclusivamente, para os candidatos a cargos disputados na Câmara dos Deputados, o que gera um choque com o art. 379 do texto da PLC, que prevê critérios de distribuição do FEFC também para os mandatos de senadores conquistados, o que reflete uma nítida limitação daquilo que poderia ser considerada uma tentativa de ação afirmativa.

Sendo assim, diante da vasta discussão acadêmica sobre o tema, a ausência do critério da interseccionalidade entre raça e gênero nos artigos que envolvam mulheres é extremamente grave. Como exemplo, pode-se citar a limitação prevista na PEC 28 para candidaturas de mulheres e negros sobre a divisão dos recursos do FEFC, texto que delimita o oposto do previsto no PLC, o que pode levar ao nascimento de uma lei inconstitucional, pois se o projeto for aprovado com o texto contrário ao que prevê o texto constitucional, será um artigo natimorto constitucionalmente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro.

OLIVEIRA, Michelle Vieira de et al. Como são eleitas as mulheres? Uma análise sobre fatores que incidem na eleição de deputadas na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Disponível aqui.

PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos. Coleção Educação para todos. Ações Afirmativas e combate ao racismo nas Américas, Brasília. p.33-45. 2005.

SANTOS, Richard. Maioria minorizada: um dispositivo analítico da racialidade.

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Leia também “O lento e tortuoso avanço da representação de mulheres no Brasil“, de Mayra Goulart e Giulia Gouveia.