Amélia é mulher de verdade. Vaidosa. Acorda mais cedo que os homens com quem trabalha. Precisa estar empetecada, como lhe exigem. É amável e sorridente. Estudiosa e inteligente. Eficiente e competente. Mas só elogiam nela a beleza e a docilidade quase submissa. Quer crescer na empresa. Não consegue. Sei lá, falta alguma coisa, dizem.

Precisa ser mais determinada, disse o chefe que a avalia. Que sempre lembra a todos que estudou em Harvard. Quando Amélia lhe explica alguma coisa, ele a interrompe com alguma expressão em inglês. Isto é mindset! Como quem diz: já sei. Aprendi em Harvard.

O chefe se apresenta como exemplo de determinação. Filho de empresário que estudou em Harvard, nasceu determinado pelo pai que estudaria lá. Também acorda cedo. Caminha com os cachorros. Toma o primeiro desjejum, leve. Joga tênis. Banho e meditação. Depois vai para o trabalho. Chega, geralmente, depois de Amélia. Sai antes dela para o almoço de duas horas. O de Amélia dura 20 minutos.

Ganhou flores e chocolates. Feliz dia da mulher! Disse o chefe. Uma flor para vocês que embelezam tanto esta empresa! Todas ganharam. E chocolates também, apesar de engordar! Disse com riso de orgulho da própria graça. Amélia agradeceu com sorriso amarelo. Jogaria as flores no lixo quando saísse do escritório.

Determinada, insistiu em um projeto. Ideia dela. Na reunião, o chefe não a entendia. Mal a deixava falar. Ela insistiu. Falou alto. O chefe não gostou. Bateu na mesa e gritou de volta um cale a boca sem dizer “cala a boca”. Porque o chefe é fino. Passou o trabalho de Amélia para outro diretor. Que disse o que não deixavam Amélia dizer. Boa ideia! O chefe apresentou para os chefes do chefe. Gostaram. Um homem vai executar a ideia. Amélia não pode. Falou alto na reunião. É descontrolada.

Voltou para casa mais cedo. Triste e nervosa ao mesmo tempo. Tomou uma fechada no trânsito. Buzinou. Foi xingada. Vadia! Tinha que ser mulher! Ligou a TV. Por hábito. Para fazer barulho e não se sentir tão só. Quando fala da solidão que sente, no lugar de um abraço, ganha perguntas. Não vai ter filhos? E marido que cuide de você? Aconselham plástica. Mais bunda. Mais peitos. Mais lábios.

Mais corpo para ser mais tesuda e menos Amélia. Menos mulher de verdade e mais de mentira. Com forma bonita por fora e adoecida por dentro. Reprimida em sentimentos e ideias num corpo esculpido em silicone. Para ser desejada e exibida mais do que amada. Vive-se bem assim. Com grana e festas. Tem amigas assim. Não as censura. Foi o caminho que acharam. O que muitos lhes sinalizaram.

Entre o alheamento dos sons desconexos da TV e seus pensamentos incompletos, ouviu que um político daqui foi à Ucrânia para aparecer fazendo coquetéis molotov. Falou das mulheres de lá, fáceis porque são pobres. Pensou que mulheres são como soldados. Lutam sem escolhas com as armas que lhes dão. Como um soldado, não quer flores, ainda que sorria quando as receba. Como um soldado, não quer bajulação nem proteção, como se fosse insegura e incapaz de cuidar de si mesma. Como um soldado, quer respeito. No mínimo, respeito.

Tomou o remédio de quase sempre com uma dose de gin e deitou-se. Da TV ouviu, lá de longe, que as mulheres estão “quase integradas à sociedade”. Dormiu com aquelas palavras sem saber se eram parte das alucinações do sono ou ecos de uma realidade perversa.

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Ilustração: Mihai Cauli

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