Vertigem.

Saltou da cama sobressaltada. Reagiu num espasmo aos gritos agressivos do despertador. Cafeteria elétrica apita bipes estridentes. Café programado de véspera está pronto. Do chuveiro, Andressa ouve notícias velhas gritadas do rádio. Colocou ainda úmida um vestido apertado.

A bolsa pendurada no ombro dificulta movimentos ágeis pelo apartamento apertado. Catou na geladeira um pedaço de pão com queijo dormido e encheu uma generosa caneca de café. Decidiu comer no caminho.

Precisou equilibrar em uma mão pão e caneca para destrancar a porta. No elevador, lembrou-se do celular. Merda! Voltou. Não sabia se andava ou tomava café parada para não entornar no vestido. Pegou o celular e deixou a caneca no lugar. Saiu com o pão na boca.

No carro, percebeu que esqueceu de colocar a calcinha. Deixou para lá. Não dava tempo. Ziguezagueou pelo trânsito ouvindo notícias. Gasolina aumentou, de novo. E vai aumentar, de novo. Comentarista diz que o governo está certo. Outro, que está errado. Político diz que é fácil de resolver. Outro, que não é simples assim. O trânsito não anda. Buzinas de uma cidade ansiosa se sobrepõem ao barulho do rádio.

Saca o celular. Mensagens urgentes. Todas são urgentes. Mesmo as sem importância. E quase todas são sem importância. Responde a todas. Comenta tudo. Para não se sentir de fora. Para não ser cobrada por gente sozinha que não sabe esperar. E todo mundo está sozinho. E ninguém sabe esperar.

Chegou na hora. Quase correndo. Quem chega depois, culpa o trânsito enquanto sorrisos falsos cumprimentam. Imagens projetadas de números e gráficos explicados em fala tediosa. Havia um problema e algo deveria ser feito. Todo dia tem um problema e algo deve ser feito. E é urgente, porque ninguém sabe esperar.

Pessoas diziam o que pensam. Para impressionar. Um diz que a estratégia está certa. Outro, que está errada. Diretor diz que é fácil de resolver. Outro, que não é simples assim. A reunião não anda. Falatórios dispersos se sobrepõem às falas dos participantes considerados irrelevantes. Andressa se sente desconfortável sem calcinha.

Fila para o elevador. Fila na porta giratória. Fila para entrar no restaurante. Fila para se servir. Fila para pesar a comida. Tem que esperar mesa. Prato numa mão, celular na outra. Digita com um dedo, já dolorido. Olhos na tela, come sem olhar o prato. Candidato não vai ser mais candidato. Outro também não. A comida aumentou. Desemprego está alto. Filho matou a mãe. Quadrilha à solta. Deputado homenageia torturador. Papa pede paz. Amanhã, vai chover. Engasgou-se. Esqueceu de pedir a bebida.

Computador lento. Planilha não abre. Telefone toca. É cobrança. Dispersa vendo notícias. Candidato desistiu de desistir. Outro desistiu mesmo. Era séria a desistência do primeiro, que desdecidiu depois. A do segundo, era boato, disse antes de desistir. Ninguém fala mais de gasolina. No corredor, um diz que política é assim mesmo. Outro, que está tudo errado. Outro, que é fácil de resolver, com ditadura. Outro, que não é simples assim.

O trânsito mudou. O tempo virou. A fome bateu. O celular parou, sem bateria. No rádio, a Voz do Brasil desdiz o que foi dito pelo jornalista. A casa está suja. Tem louça na pia. Esqueceu a roupa na máquina.

Deitou-se sem banho. Cansada. Vestida. Sem calcinha. Zonza. Incerta. Endividada. Entorpecida de espantos. Encurralada no labirinto vertiginoso de imagens e sons que não fazem mais o menor sentido.

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Ilustração: Mihai Cauli
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