Um ensaio sobre a alternância PT-PSDB a partir do modelo de Hotteling

Não é raro ouvir a afirmação de que o período dos governos petistas representou possibilidades perdidas de pôr em prática uma agenda política de interesse público comum, congregando os principais partidos progressistas em disputa. Tal agenda teria como epicentro as chamadas reformas estruturais, necessárias ao crescimento econômico. Neste artigo, objetiva-se demonstrar, em primeiro lugar, que essa unidade não se viabilizou porque, ainda que se tivesse consenso em torno do teor dessas reformas, a própria dinâmica da disputa política seria um fator a separar os partidos com base na busca da representação de seus interesses eleitorais, conforme ilustrado pelo diagrama de Hotteling. Em segundo lugar, não se viabilizou porque o conteúdo das políticas que levaram o PT a avançar seu domínio sobre o centro contribuiu para intensificar várias contradições sociais e gerar a crise do sistema político.

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O Brasil assistiu desde a redemocratização, principalmente do período que vai do Governo Itamar Franco, 1992, até as grandes manifestações de 2013, a momentos de estabilidade política praticamente sem precedentes em sua história, o que pode ser constatado pelo avanço de várias pautas democráticas, como a inclusão social e a ampliação dos direitos dos chamados grupos minoritários. Desde então, a agenda propositiva cedeu lugar à ameaça de ruptura, ao questionamento da ordem legal e ao abandono das reformas inclusivas. Muitos se perguntam sobre o que aconteceu e o que explica a instabilidade e a guinada conservadora que o país passou a viver desde então.

O caráter complexo e contraditório da realidade social oferece dificuldades que superam em muito os desafios enfrentados nas ciências naturais. É de uso limitado, por exemplo, a principal técnica usada pelos físicos, ou seja, a modelagem baseada em métodos quantitativos, isso porque, dado o caráter contraditório e de rápida mutação da realidade, torna-se impossível provar fidedignamente a dependência de cada fenômeno particular com relação à chamada totalidade social. Tais limitações existem, de fato; por isso, é importante salientar que o modelo usado aqui figura apenas como um dispositivo heurístico, que não dispensa certa licenciosidade diante do propósito de isolar causas e entender o primeiro movimento de uma dinâmica política confusa, ainda que específica.

O modelo em questão foi desenvolvido inicialmente por Harold Hotteling em 1929 para descrever a decisão de localização de dois competidores espaciais. A ideia é que produtores que oferecem um mesmo produto, e que diferem apenas em sua distância espacial para o comprador, tendem a dividir um segmento de reta a partir do centro, cada um dominando a extensão da reta oposta ao do lado do concorrente. No caso, a informação fundamental do modelo é que os competidores tenderão a se igualar em tudo, restando apenas os custos de transporte para diferenciá-los. Se essa sugestão de análise for um recurso heurístico válido, esse modelo pode ser usado para lançar luz ao entendimento da dinâmica política; nesta, a competição por votos leva a um desenho claro em que duas posições contrastantes se aproximam para capturar o interesse do chamado eleitor mediano[1].

A lógica acima pode ser vista em sua prática principalmente nos Estados Unidos, com a divisão entre os partidos Republicano e Democrata. Acredita-se também ser pertinente para explicar a estabilidade política da Nova República no Brasil, principalmente pós-Plano Real. Nesta última, o enfrentamento político ocorreu por meio de dois partidos social-democratas, o PSDB, com viés mais de direita, e o PT, com viés mais de esquerda. O importante é que, dada a aceitação quase irrestrita da democracia como arena legal para mitigar as disputas, outros consensos foram se somando, como o da estabilidade econômica (combate à inflação) e o da já referida inclusão social. O resultado desses consensos veio na forma de oito anos de governo do PSDB, sucedidos pelos 13 anos do PT.

O período que se inicia em 2013 com as grandes manifestações de rua, ou jornadas de junho, até o impeachment de 2016, marca o fim deste sistema de disputa e de alternância de poder. Mais do que a data precisa, o importante é observar que o elemento disruptivo já estava contido na própria dinâmica do sistema. O fundamental da estabilidade era que vários interesses fossem contemplados, o que se tornou possível dado o crescimento econômico, particularmente dos lucros e salários, e a maior inclusão social. Entretanto, na arena política especificamente, o sucesso da política do PT levou ao esvaziamento do apelo dos partidos de centro e centro-direita. Pensando em termos de modelo de Hotteling[2], o PT capturou boa parte do segmento de reta dominado pelos partidos de direita, indo de E para E’ na reta da figura 1, abaixo.[3]

A radicalização mais à direita do PSDB pode ser explicada como uma reação à ofensiva de seu principal competidor. Muitos especulam por que as agendas dos dois principais partidos não se aproximaram, visando, no caso, à aprovação de reformas de interesse do país. Excetuando as dificuldades em definir o interesse comum, tal movimento de aproximação poderia apontar para a própria possibilidade de morte do PSDB. Ao contrário, a saída “racional” em termos políticos foi o partido se identificar cada vez mais com o ideário político conservador e econômico liberal. Assim, transformou-se no partido que deu voz a certos interesses minoritários específicos, ainda que representativamente poderosos, da sociedade.

Para um melhor entendimento dessas mudanças, é necessário destacar um pouco mais as principais realizações dos governos do PT, tendo em vista que o sistema político, ou sistema de representação baseado na democracia partidária, é apenas a parte de todo um sistema político fundado em interesses e posições econômicas e sociais. O que os dados apontam é que no período petista as condições de vida melhoraram no Brasil, fruto das melhorias nas relações de trabalho, como atestam as políticas de valorização do salário mínimo e extensão da legislação trabalhista ao emprego das domésticas, as políticas de ampliação do acesso ao ensino universitário e os programas focalizados de auxílio aos pobres. Vale destacar também as conquistas macroeconômicas, cujo reflexo maior foi o aumento do poder de compra do salário no exterior e a manutenção do controle da inflação, fazendo com que essa deixasse de ser um encargo para os mais pobres.

Se tudo parecia dar certo, por que a mudança? Antes foram mencionados os fatores que minaram por dentro essa coalização, com o PT eliminando a concorrência política ao avançar sobre o segmento de reta anteriormente ocupado por vários partidos moderados. Mas isso é da dinâmica da representação política; o desafio é explicar o porquê de a radicalização à direita ter crescido na sociedade e, após a compressão desta radicalização, entender a força elástica de reação que passou a exercer para minar o sistema político.

O primeiro elemento a destacar é que, numa sociedade historicamente marcada pela desigualdade social e pela diferenciação, principalmente com base no consumo conspícuo, a ascensão dos mais pobres e a inclusão pelo consumo foram elementos que alimentaram o descontentamento de certos setores da sociedade. Cita-se, no caso, a própria classe média, impactada pelo aumento dos impostos, pela concorrência nas universidades e demais serviços, e pela já citada PEC das domésticas, que lhe encareceu os próprios custos de reprodução (ver Jessé Sousa). Ligados a essa classe média estão também certos interesses corporativos, dos quais se destacam: o dos médicos, afetados por programas que objetivavam aumentar a concorrência no setor ‒ Mais Médico; o dos militares, incomodados pela revisão dos crimes da ditadura; o dos membros do sistema de justiça, afetados pelo próprio clamor moralista emanado da classe média e difundido pela mídia corporativa.

O segundo fator de instabilidade vem exatamente da associação entre os interesses de parte do sistema de justiça e os da mídia corporativa. A mídia é considerada um dos pilares da democracia, muitas vezes vista como uma espécie de quarto poder, servindo de guardiã dos propósitos dos cidadãos ao protegê-los contra os abusos de autoridade. Contudo, é amplamente reconhecido que a comunicação no Brasil é deficitária em termos de representação democrática, pois seu domínio é exercido por oligopólios de propriedade cruzada em vários segmentos da informação, com financiamento de poucos grupos econômicos.

A responsabilidade da mídia com a crise está na própria forma que ela encontrou para superar a queda de receita trazida pelas novas formas de comunicação baseadas na internet, ou seja, intensificando a produção de conteúdos que realimentavam a insatisfação da classe média. Isso explica o amplo suporte dado à difusão da operação Lava Jato, cujo resultado maior foi o de contribuir de modo decisivo para a desmoralização da política.

O terceiro ponto que explica o colapso do sistema são os interesses de determinados grupos econômicos externos e internos.  Externamente destaca-se o lobby da indústria petrolífera pela desnacionalização do acesso aos recursos estratégicos do pré-sal. Internamente, à medida que o processo de desindustrialização se acelerou, pela compressão das margens de lucro no setor, assistiu-se a um processo de financeirização crescente, com parcela do capital migrando em busca de novas condições de reprodução, ou no porto seguro da dívida pública, ou no setor atacadista – Havan, Magazine Luísa e Riachuelo são exemplos disso – ou no agronegócio exportador.

A tais grupos passou a interessar o fim de várias restrições, como certos direitos trabalhistas e ambientais, além da intensificação das privatizações, bem como a manutenção da política fiscal contracionista e de aumento dos juros. A dupla natureza, principalmente dos negócios atacadistas, explica a importância da política fiscal centrada nos juros altos, já que eles são em parte voltados a atender ao consumo e, em parte, têm seus vínculos com o mercado financeiro através de suas próprias agências de crédito.

Enfim, por que acabou a estabilidade baseada no sistema de alternância PT-PSDB? Acabou porque o sistema econômico por trás do arranjo político partidário passou a não mais comportar os interesses em disputa; em outros termos, mudanças substanciais para manter os ganhos de vários setores ou reverter perdas só poderiam ser feitas mediante a radicalização da agenda política, apelando para a destruição do aparato institucional existente. O veículo principal da mudança foi a cooptação do eleitor mediano por meio do discurso antissistema, que se tornou possível graças ao controle das novas tecnologias da informação, sobretudo pelo uso de disparos em massa de fake news. Como resultado, os partidos de centro-direita e direita foram substituídos por representações mais genuínas da extrema direita, com o polo central da disputa passando a se localizar mais à direita do segmento de reta ilustrado pelo diagrama de Hotteling.

[1] O eleitor mediano é aquele com posições mais moderadas, situado em torno de um centro político, separando as preferências extremas da sociedade.

[2] Onde EE é extrema esquerda, ED, extrema direita, E, esquerda e D, direita.

[3] O modelo da ferradura considera a extrema esquerda e a extrema direita como moralmente simétricas. Não é o caso aqui; as posições antagônicas ao longo de uma linha significam apenas que, diferentemente das demais representações, ambas têm como objetivos a superação da ordem institucional existente.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli 

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