A vida política francesa ainda é marcada por uma ruptura dramática que se abriu no verão de 1940. Depois que o exército francês sofreu pesadas perdas no campo de batalha contra a Alemanha, o parlamento do país entregou o poder a Phillippe Pétain, um herói de guerra altamente condecorado.
Pétain assinou um acordo com Hitler que deixou o norte da França sob o domínio direto da Alemanha. Ele estabeleceu seu próprio regime na cidade de Vichy, que se tornou sinônimo de colaboração na Europa ocupada. Oficiais de Vichy organizaram a deportação de judeus para os campos de extermínio nazistas. Enquanto isso, um oficial francês renegado, Charles De Gaulle, foi para Londres e prometeu lutar. Dentro da França, grupos de resistência começaram a se organizar para lutar contra a Alemanha nazista e seus colaboradores franceses.
Desde a libertação da França pelos Aliados em 1944, um debate acirrado vem sendo travado na política francesa sobre a experiência de ocupação e resistência durante a guerra. O debate continua a ser uma questão de contestação política até hoje.
Nosso entrevistado, Jim Wolfreys, ensina política francesa no King’s College, em Londres. Ele é o autor de Republic of Islamophobia: The Rise of Respectable Racism in France. Esta é uma transcrição editada de um episódio do podcast Jacobin’s Long Reads. Você pode ouvir o episódio aqui.
Daniel Fin (DF) – Como você explicaria a rápida capitulação francesa à Alemanha nazista no verão de 1940? Foi ditado principalmente por fatores militares ou havia um espírito derrotista entre a classe dominante francesa por outras razões?
Jim Wolfreyes (JW) – A derrota da França levou seis semanas. Era um Exército que deveria ser o melhor da Europa, então a queda da França foi um grande choque. A linha de Phillippe Pétain após a derrota era um produto da Frente Popular. Ele afirmou que a França havia se tornado decadente e que as deficiências militares eram basicamente um reflexo das fraquezas políticas herdadas da política da década de 1930.
Este era um argumento importante, porque o armistício e as políticas colaboracionistas do regime de Vichy poderiam se tornar mais palatáveis. Supostamente, a Terceira República criou uma situação que levou à derrota e, portanto, o imperativo não era se opor à força da ocupação; em vez disso, estava estabelecendo as medidas radicais necessárias para a renovação nacional.
Charles de Gaulle, por outro lado, argumentou que as falhas militares estavam na raiz da derrota, que era uma questão de tática e que o comando militar francês havia sido pego de surpresa. Havia alguma verdade nisso, embora estudos tenham mostrado posteriormente que a França não estava necessariamente pior preparada do que a Grã-Bretanha. A Alemanha tinha uma estratégia militar superior, mas a França se mobilizou maciçamente para a guerra. Houve erros cometidos com estratégias defensivas por parte dos franceses, mas a noção de que a decadência ou a natureza polarizada da política eram os culpados não é um argumento crível.
A verdadeira capitulação veio após a derrota militar, quando as elites francesas fizeram acordos com Vichy: primeiro, o armistício, e depois o próprio processo de colaboração, que pôs em movimento uma lógica que levou a França a uma cumplicidade cada vez maior com a força da ocupação.
DF – Até que ponto o regime de Vichy, que se formou após a rendição francesa, era um produto caseiro, por assim dizer? Como se compara a outros Estados autoritários de direita da época, de Hitler e Mussolini a Franco e Salazar?
JW – A principal diferença em termos do regime de Vichy foi que ele chegou ao poder com uma derrota, então era um governo subordinado. Ele tinha muitos paralelos com regimes fascistas e autoritários em outros lugares. Tinha uma agenda autoritária, racista e elitista. Mas não chegou ao poder por trás de um movimento de massa independente. Não tinha as mesmas raízes na sociedade que Hitler ou Mussolini.
Havia semelhanças com o catolicismo reacionário do regime de Franco. Também foi influenciada pelas organizações fascistas que surgiram na França após a Primeira Guerra Mundial.
Com o passar do tempo, o regime passou a depender cada vez mais da repressão, com a centralização da força policial e o estabelecimento de uma milícia. Colaboradores pró-nazistas desempenharam um papel mais proeminente. Mas a colaboração também significava estar em conformidade com um novo status quo – não era simplesmente uma questão de filiação ideológica. Havia uma suposição de que uma Europa nazista era inevitável: este era o futuro, e a República havia chegado ao fim. Houve participação no regime das elites estabelecidas.
DF – O regime de Vichy possuía algum grau significativo de autonomia da Alemanha nazista, apesar da ocupação?
JW – O regime tentou afirmar um grau de autonomia, ideologicamente através de sua noção de uma revolução nacional – a ideia de que a França precisava expurgar a decadência causada pela existência de forças “antinacionais” dentro da França, como judeus, maçons, comunistas e estrangeiros.
Em termos de quanta autonomia Vichy realmente tinha, houve diferentes fases, mas no geral, essa autonomia era em grande parte uma ilusão. Inicialmente, havia uma ênfase em Pétain como uma figura supostamente benigna. Durante esse período inicial de confusão após a derrota, podemos dizer que houve amplo apoio passivo a Pétain.
Esta tentativa de purificar a França da influência judaica foi iniciada sem ordens das forças de ocupação. No entanto, a ideia de que Vichy tinha alguma capacidade de agir de forma independente mostrou-se ilusória à medida que a guerra se desenrolava. A partir de novembro de 1942, a zona ocupada foi estendida a toda França. O serviço de trabalho obrigatório na Alemanha foi introduzido e 700 mil trabalhadores franceses foram para a Alemanha. Nesse contexto, a noção de que o regime era independente da Alemanha era absurda.
DF – Como se desenvolveu a resistência a Vichy e ao nazismo? Qual era a relação entre a resistência interna, por um lado, e as forças francesas livres lideradas por De Gaulle de fora da França, por outro?
JW – No início, houve alguma resistência, mas permaneceu bastante limitada. Isso mudou quando a Alemanha invadiu a União Soviética em junho de 1941. O Partido Comunista Francês então se engajou oficialmente na resistência armada por meio de sabotagem e morte de soldados alemães. A introdução do trabalho compulsório na Alemanha a partir de 1943 fortaleceu essa resistência na França. Mas esses grupos eram geralmente descoordenados e sem sentido, certamente durante a primeira metade da guerra.
Fora da França, de Gaulle estabeleceu a si mesmo e suas forças da França Livre como uma espécie de governo em espera. Ele desempenhou um papel na mobilização de apoio à resistência nas colônias francesas. Dentro da França, os diferentes grupos de resistência foram reunidos em 1943 e um Conselho Nacional da Resistência foi criado.
DF – Você diria que a posição do Partido Comunista Francês foi minada a longo prazo pelo pacto Hitler-Stalin e por seu histórico antes do ataque nazista à União Soviética em 1941?
JW – Não a longo prazo, por causa do que aconteceu quando o Partido Comunista se juntou à resistência. O pacto de não agressão Hitler-Stalin de 1939 significou que o partido sofreu a curto prazo. Perdeu um número significativo de membros e adotou a linha de oposição à guerra como luta entre potências imperialistas. Foi a partir de junho de 1941, que o Partido Comunista entrou na resistência como o único grande partido a fazê-lo de forma tão inequívoca no país.
DF – Que tipo de energia popular foi desencadeada pela libertação da França em 1944?
JW – No período inicial do pós-guerra, houve uma onda de expurgos. Estima-se que cerca de 10 mil pessoas foram executadas neste período imediato do pós-guerra. Houve também uma onda de greves. Havia grupos de resistentes armados ainda ativos e temores de que haveria algum tipo de insurreição comunista. Isso não aconteceu, em parte por causa do papel do Partido Comunista.
DF – Qual foi a política de De Gaulle logo após a libertação e qual foi a política dos comunistas franceses?
JW – De Gaulle e os comunistas trabalharam juntos no governo provisório do período imediato do pós-guerra. Os comunistas essencialmente tinham uma escolha: garantir a estabilidade, trabalhar com o governo provisório e limitar as reivindicações dos trabalhadores, ou apoiar as possibilidades insurrecionais do período. Eles escolheram o primeiro curso de ação. Eles trabalharam com De Gaulle até 1946, quando houve um desentendimento com este, que queria fortalecer a autoridade executiva. Os comunistas deixaram o governo um ano depois, após o estabelecimento da Quarta República, a implementação do Plano Marshall e o início da Guerra Fria.
DF – Desde a década de 1980, a extrema direita agrupada em torno de figuras como Le Pen tornou-se um elemento permanente no cenário político e eleitoral francês. O próprio Le Pen chegou ao segundo turno da eleição presidencial em 2002, e sua filha o fez novamente em 2017. Como você diria que o movimento de extrema direita contemporâneo influenciou a percepção de Vichy na França?
JW – Acho que há dois processos em andamento desde o avanço da Frente Nacional na extrema direita. Um deles são as tentativas de revisionismo de Le Pen. Houve um reconhecimento pela extrema direita nos anos imediatos do pós-guerra de que o peso do período de ocupação na consciência pública impediria que um movimento fascista se desenvolvesse na França. Nesse sentido, pessoas como Le Pen entendiam que os crimes da ocupação teriam que ser relativizados ou minimizados para que a extrema direita avançasse.
O segundo processo ocorreu na briga entre a extrema direita e a direita dominante. Essa foi uma noção desenvolvida pela chamada Nouvelle Droite [Nova Direita] nos anos 1970, segundo a qual os crimes da ocupação não nos dizem respeito – eles não têm nada a ver conosco.
Por um lado, Le Pen se engajou na negação, como falar sobre o Holocausto como um detalhe da Segunda Guerra Mundial, fazer trocadilhos sobre os fornos a gás ou usar linguagem provocativa. Ele chamou as pessoas com AIDS de sidaiques, ecoando o termo de Vichy para judeus (“judaique”). Era uma questão de negação deliberada e direta dos crimes da ocupação e uma tentativa de ridicularizar as pessoas que levavam esses crimes a sério.
Marine Le Pen também ecoou essa retórica, comparando os muçulmanos que rezam nas ruas com a experiência de viver sob ocupação. A Frente Nacional evocou deliberadamente o período da guerra, propondo cotas de crianças imigrantes nas escolas ou preferência nacional por cidadãos franceses, a eliminação de referências cosmopolitas em livros escolares e etc…
Por parte da direita dominante, houve um eco das políticas da Frente Nacional. Na década de 1990, por exemplo, a direita de Chirac propôs que qualquer pessoa que oferecesse hospitalidade a imigrantes deveria informar as autoridades competentes sobre seus movimentos, ecoando a legislação introduzida por Vichy. Nicolas Sarkozy, após sua eleição como presidente em 2007, criou um ministério para imigração, integração e identidade nacional. Os historiadores traçaram paralelos com Vichy. Um dos ministros de Sarkozy organizou uma conferência sobre a integração dos imigrantes e escolheu Vichy como sede.
Essa entrevista foi editada pelo Terapia Política e a íntegra foi publicada originalmente no site Jacobin Brasil, em 23 de abril de 2022.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Tradução: Felipe Kusnitzki
Ilustração: Mihai Cauli
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