Athaíde Lopes “Abandono” (detalhe)

Celina voltou de vez para casa. Aquela em que nasceu e que, mesmo morando em outra, nunca deixou de ser a sua casa. Continuaria sendo ainda que estranhos morassem lá. Estava longe há décadas, por necessidade. Apesar dos maus-tratos sofridos por ser estrangeira, até gostava da vida lá longe. Acostumou-se a gostar da vida que podia ter lá. Vivia seu quase exílio conservando de sua terra lembranças difusas da infância e a casa, que preferiu deixar abandonada do que ocupada por estranhos.

Os primeiros meses depois da volta foram difíceis, desacostumada que estava dos costumes de sua terra. Mas logo viu que os costumes que poderia ter preservado, de pouco lhe valeriam agora. As coisas mudaram. E muito! Para pior. Sua terra está mais violenta. Mais cruel. Mais perversa. A casa também mudou. Suja, feia, deslocada naquele espaço tomado por modernidades arquitetônicas e pequenos negócios com pretensão ao luxo. A casa perdeu sua imponência. A terra, mais que isso.

Não importa se mudaram aos poucos. Para ela, que voltou de repente, é como se tudo tivesse mudado de repente. De repente, a floresta pujante raleou, esfumaçou-se e tornou-se pasto para boi a ser esquartejado e vendido como se fosse boi vivido em outros lugares. Como se fosse boi de criação honesta. De história sem crimes. Boi inocente. Aceito como tal só porque o dinheiro é mais importante que a floresta, a lei e a vida. Mais importante que tudo. Dinheiro faz do esperto ingênuo o suficiente para acreditar na inocência do boi que come.

De repente, gente faminta passou a brigar por um espaço de mergulho na caçamba imunda de um caminhão em busca do que há de comer no lixo. Gente faminta de tudo. Para quem a fome escraviza e faz deles espetáculo nojento para uma gente que não se escandaliza com a miséria. E que acha que fome é o que sente quando o restaurante demora em lhe servir o prato de nome estrangeiro. Gente abandonada por gente que abandonou a compaixão na terra abandonada de vergonha onde fica a casa abandonada de Celina.

Foi no mesmo repente que de repente a cidade da casa abandonada de Celina tornou-se também cidade abandonada. Como que harmonizando a sujeira dentro e fora. Também o medo dos de fora de entrar na casa tornou-se o mesmo dos de dentro de qualquer outra casa de sair dela. Rua de cidade abandonada é perigosa. Cheia de gente perigosa. De perigos reais que a cada notícia deles alimenta outros tantos perigos imaginários. De cidade dos sonhos, onde ficavam casas dos sonhos, virou cidade de pesadelos com pesadelos em casa. Cidade abandonada de civilidade onde fica a casa de Celina, abandonada de aconchego.

O abandono, no começo, pode ser desleixo, desimportância ou irresponsabilidade. Depois, de repente, vira loucura. Na terra abandonada onde ficam cidades abandonadas repletas de casas abandonadas com gente dentro tudo é loucura. Chacinas aplaudidas são loucura. Justificar assassinato de quem pensa diferente é loucura. A indiferença à fome é loucura. Escravidão consentida porque dá dinheiro é loucura. Fazer sofrer em nome da fé e querer matar em nome de Deus é loucura. Fazer criança estuprada sofrer e não meter a colher em briga onde marido espanca e mata mulher é loucura.

Loucuras do país abandonado de decência, onde ficam cidades abandonadas de compaixão, cheias de casas abandonadas de aconchego com gente abandonada à própria sorte e medos. Lá, onde fica a casa abandonada de Celina, assustada com as loucuras que se fizeram, de repente, nos vazios morais do abandono.

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