Diz a lenda, contada naquela região, que exatamente naquele lugar esquecido por Deus e pelos homens apareceu a peste. Naqueles tempos adoeciam e morriam sem saber o porquê. Davam nomes às doenças do mesmo jeito que apelidavam pessoas ou as grandiosidades e estranhezas da natureza. Joca da Botica, por exemplo, morreu de vento virado. Dizem que Titonha sofreu muito com espinhela caída antes de cair morta de susto quando ouviu uma vaca chamar o seu nome.

Não havia ciência por lá para curar da Peste. Nem Filosofia que a entendesse. Doente, a pessoa enlouquecia de fúria e credulidade em coisas incríveis. Seu Genésio, por exemplo, no auge de sua doença, deu uma gravata em seu melhor amigo quando o viu dando um abraço afetuoso em Sidiney. Gritava que homem não abraçava homem daquele jeito. Ou como Sinhá Nhoca que em plena madrugada arrombou a mercearia de Nhô Tão porque acreditou no boato de que lá aconteciam rituais satânicos que faziam o pão ficar gostoso. Não se sabe se ela queria expulsar o Tinhoso ou roubar-lhe a receita.

A coisa toda passou do pitoresco ao trágico quando a primeira vítima apareceu. Como todo ódio precisa de alguém para odiar, a cidade dividiu-se em dois grupos, os azuis e os amarelos. Como em tantas outras cidades pequenas como aquela, as pessoas eram conhecidas como pertencentes a uma família. Eram Tião da Tonha, Tunico do Tinho, Zezé do Zonta e outros tantos apelidos que diziam de quem se é filho, marido ou esposa; mas de repente Tião brigou com Tonha, Tunico estapeou Tinho e Zé não queria mais saber de Seu Zonta só porque preferiam uma cor a outra. Foi neste clima de gente que antes se amava e agora se odeia que Zenólia foi morta.

Ela sempre foi na dela. Arredia, como dizem por lá. Falava pouco, era agradável e extremamente tímida. Desde criança gostava da cor amarela. Sua casa e roupas eram amarelas há tempos, mas, idiotizada, a cidade agiu como se não soubesse disto. Boatos diziam que ela era uma ferrenha amarelista. Azuis começaram a hostilizá-la e amarelos a admirá-la pela seu tão completo amarelismo. Ela mesma, coitada, nem entendia bem os porquês de amarelos e azuis. Sabia só de seu gosto e não queria muito papo com ninguém. Sua timidez era arrogância para os azuis e altivez para os amarelos, que passaram a chamá-la de Diva Zenólia.

Um dia, ao driblar adoradores amarelistas para sair de casa, um azulista enfurecido disparou quase à queima roupa. Acertou-lhe a cabeça que explodiu enchendo de vermelho aquela gente amarela e azul. Houve um silêncio muito breve, quase efêmero. Bastou alguém gritar “Ali, o azul!” que uma pancadaria furiosa começou. Gritos de raiva e dor ecoaram pela rua, às vezes abafados por pipocos de armas, batidas de latas, vidros estilhaçando, madeiras e ossos se quebrando. A violência espalhou-se rápido por outras ruas e chegou até as roças. No fim do dia, havia quase três dezenas de mortos e uma montoeira de feridos entregues à própria sorte.

Daquele dia em diante as coisas mudaram. Aquele tempo de ignorância e fúria foi um tabu por muito tempo. Tentavam esquecer o inesquecível por não conseguirem compreender o incompreensível. Só bem depois, quando os netos dos que sofreram aqueles tempos tornaram-se bisavós é que começaram a contar aquela história para as crianças. Para que saibam. Para que não esqueçam. Porque a peste ainda está por aí. No que se vê e ouve. No que se fala e no que se cala. Porque a peste mata, mas nunca morre.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Clique aqui para ler outras crônicas do autor.