O governo do tenente Bolsonaro tem sido marcado por uma série de irregularidades e crimes cometidos pelo chefe do Executivo desde o dia de sua posse em 1º de janeiro de 2019. Contando com a blindagem assegurada pelo maior engavetador geral de processos que nosso País já conheceu, o presidente não se preocupa em seguir as leis e as regras das instituições republicanas. Na verdade, ele rejeita adotar até mesmo um comportamento minimamente aceitável que se espera do ocupante do cargo. Ele confia de forma plena na cumplicidade de Augusto Aras, a quem indicou para chefiar a Procuradoria Geral da República (PGR) por dois mandatos consecutivos.
Bolsonaro vem se apropriando de órgãos e entidades do setor público federal com o intuito explícito de promover a institucionalização de suas propostas de governo e sua visão de mundo. Por um lado, ele promove a destruição do Estado e o desmonte das políticas públicas, por meio da carta branca oferecida a Paulo Guedes no comando da economia. Por outro lado, ele implementa um profundo ativismo político-ideológico nas próprias estruturas estatais, com o intuito de forjar uma realidade à sua maneira, um mundo paralelo para o puro deleite e regozijo da extrema-direita radicalizada que o apoia de forma incondicional.
Os exemplos de tal conduta são inúmeros, assim como a passividade dos responsáveis pelas instâncias com potencial de iniciar questionamentos jurídicos, como seria o caso do PGR nas acusações de irregularidades e do Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, para os infindáveis pedidos de impeachment que se avolumam nas gavetas de seu gabinete. A família do Presidente da República e o núcleo duro do bolsonarismo manipulam de forma muito competente e eficiente aos seus propósitos as redes sociais. Assim, criam um enorme espaço para divulgação de notícias falsas para parcelas importantes da população brasileira, que passam a se informar quase que exclusivamente por esse tipo de fonte de informação mentirosa.
Bolsonaro e o negacionismo de vários tipos
Bolsonaro é o principal responsável direto pelo negacionismo histórico e científico que vem marcando a pauta do próprio governo federal ao longo dos últimos quatro anos. Assim foi com a questão do meio ambiente e os índices crescentes de desmatamento, ainda em 2019. Foi ali, ainda no primeiro ano de governo, que as informações de rotina reveladas pelas imagens que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) divulgavam foram desautorizadas por ele e por sua equipe de ministros. Ao atender às demandas dos dirigentes do agronegócio, Bolsonaro criou um outro Brasil, onde não havia expansão das queimadas nas regiões da fronteira agrícola.
A negação da ciência veio também com a crise da Covid-19, quando a doença foi menosprezada e subestimada nas manifestações do governante. No plano interno, deu-se a repressão a todas as tentativas de órgãos da saúde pública e da pesquisa do setor que se levantavam contra a agenda da cloroquina e medicamentos similares. Além disso, Bolsonaro buscava desmoralizar publicamente as agências internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e as entidades de especialistas do setor. Foi o caso de sua cruzada contra a vacina e sua campanha sistemática contra as necessárias medidas de isolamento social. Para tanto, trocou várias vezes de Ministro da Saúde e pressionou como pôde as direções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Ainda no domínio da agenda da vigilância em saúde, ele manipulou também as decisões da agência no que se refere à liberação de agrotóxicos e demais demandas de interesse do agribusiness, com o consequente comprometimento da saúde da população e do meio ambiente. A maioria dos casos era decidida contra as evidências e as pesquisas científicas, com a aceitação dos argumentos arranjados pelos lobistas do setor e das grandes empresas multinacionais detentoras das patentes dos produtos, cujo uso e negociação já eram interditados no exterior.
Do meio ambiente à fome, passando pela Covid-19
Nos casos das demarcações de terras indígenas e quilombolas, o negacionismo bolsonarista transitava para a esfera do histórico e do cultural. Os marcos de referência para o embasamento jurídico da atribuição dos espaços e territórios a seus legítimos detentores foram sistematicamente questionados e os interesses dos operadores do agronegócio ocuparam mais uma vez a prioridade nas definições do governo.
As manipulações envolvendo as atividades da Polícia Federal (PF) e da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) foram, da mesma forma, escancaradas. A intenção primeira era sempre a de evitar a tramitação ou mesmo o início de investigações envolvendo a família do presidente e seu círculo político mais próximo. Para atingir tal objetivo, eles sempre se utilizavam de argumentos sem nenhuma consistência do ponto de vista jurídico ou mesmo de questionamento dos indícios ou das provas apresentadas.
Em tempos mais recentes, Bolsonaro passou a questionar não mais apenas a ciência, mas também a realidade gritante das famílias ou de qualquer pessoa que tenha um mínimo de contato com a realidade vivida pela maioria da nossa população em seu cotidiano sofrido. Como o aprofundamento da crise social e econômica está provocando grandes dificuldades em sua busca da reeleição, uma das poucas alternativas que lhe resta é a negação da fome. Uma loucura! Assim, em seus discursos e na sua campanha, ele afirma que os números são mentirosos e que a realidade não é tão grave assim como afirma a oposição.
Desemprego? Inflação? Para ele e seus aficionados, tudo não passaria de mentira deslavada dos críticos. Ele chegou ao cúmulo de afirmar durante o primeiro debate eleitoral na televisão que a “economia está bombando”. Em outro momento, voltou a indagar em uma entrevista se os jornalistas tinham visto “alguém pedindo pão no caixa da padaria? Você não vê, pô”. Como naquele programa eram todos eram simpáticos a ele, não foi perguntado o que Bolsonaro achava das pessoas buscando restos de comida nos lixões ou nas tristemente famosas filas do osso em açougues ou feiras livres.
Atitude criminosa e covarde de Erick Figueiredo
Pois apesar de toda a insanidade criminosa envolvida nessa retórica, Bolsonaro ganhou um aliado nesse debate. A tarefa de puxa-saquismo mór coube ao indivíduo que ele mesmo havia indicado em março passado para presidir o respeitadíssimo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA). Erick Alencar de Figueiredo resolveu se valer do cargo para atropelar a seriedade dos processos de discussão e divulgação das pesquisas do instituto e tornou pública uma nota, supostamente técnica, de tom negacionista ao extremo. A intenção do indivíduo, que vai carregar essa mancha de oportunista em seu currículo ao longo de sua carreira de professor universitário na Universidade Federal da Paraíba, era a de oferecer argumentos a Bolsonaro de que não haveria mesmo indicadores demonstrando aumento da fome no Brasil (sic).
As reações a tal tentativa não poderiam mesmo ficar apenas na sua classificação como patética. Foi um ato criminoso. Em atitude necessária e corajosa, a associação dos servidores do órgão denunciou de imediato a decisão do preposto bolsonarista à frente do IPEA e exigiu a apuração do processo. Afinal, não há contorcionismo metodológico e de esmagamento de dados que seja capaz de transformar a realidade gritante. Erick foi buscar em uma base de informações desatualizada da área da saúde elementos que dariam conta de sua encomenda: oferecer de bandeja ao seu chefe maior um “estudo” onde a fome deixava de ser um problema grave do Brasil.
A nota assinada pelo sujeito contempla, dentre tantas outras barbaridades, as seguintes afirmações:
(…) “O conjunto desses resultados permite antever uma redução da pobreza, bem como da insegurança alimentar e da fome no Brasil em 2022” (…) (GN)
(…) “O conjunto de evidências aqui expostas indica que não foram observadas manifestações associadas à insegurança alimentar, à má nutrição e à fome” (…) (GN)
IPEA reage e mantém sua tradição de seriedade
Felizmente a comunidade das áreas da economia e dos estudos sociais não esquecerão tal conduta do pesquisador irresponsável, que não se preocupa com nenhum tipo de rigor científico ou de respeito à ética quando se trata de manter o cargo e de fazer acenos e agrados ao superior hierárquico. As eleições estão se aproximando e as pesquisas de intenção de voto parecem apontar para uma derrota de Bolsonaro. Casos como esse deverão ser bem tratados pela nova equipe de governo, para evitar a continuidade desse tipo de colaboracionismo oportunista com a extrema-direita.
Em 2024, o IPEA vai comemorar seus 60 anos de existência e não será uma atitude irresponsável como essa do atual presidente que poderá comprometer a imagem de seriedade e competência construída pela instituição ao longo das décadas. Bolsonaro bem que tentou destruir o órgão que tanto lhe incomodava, mas não foi exitoso em seu intento. Os membros da carreira de planejamento que foram cúmplices de tal conduta certamente serão julgados pela História. Os inúmeros casos de assédio institucional que ocorreram ali e nos demais espaços da administração pública federal foram amplamente denunciados pelas entidades dos servidores. Mas, como diz o dito popular, nada como um dia após o outro.
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Revisão: Celia Bartone
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