Estranha a vida de quem não vive a própria vida. Houve um tempo em que nos perguntávamos se os nossos desejos eram mesmo nossos ou nosso era apenas o desejo de desejar o mesmo que os outros. Para nos sentirmos menos solitários. Menos esquisitos num mundo onde a singularidade é esquisita.

Hoje é diferente porque, talvez, ninguém queira ser diferente. Não se tolera mais a diferença. A vida boa virou vida pasteurizada. Vida prêt-à-porter. Aceita-se como próprio o desejo manifesto dos outros. Só pelo aplauso que confirma nossa pasteurização. É o aplauso, o like, a lacração, a viralização e a mitada que dão a vidas vazias de sentido a ilusão de plenitude.
Talvez, por isso, o bizarro da cena. Deputado truculento saca o celular para ofender jornalista. E a jornalista saca o celular para se defender do deputado. Falam um com o outro, mas não um para o outro. Cada qual para sua própria audiência.
Antigamente, ofendia-se para encontrar no olhar de irritação do ofendido a sensação de superioridade que o ego ofensor perdeu em algum sentimento torpe.

Hoje, ofende-se para que olhos odiosos, para além das telas, devolvam elogios ao agressor e novas ofensas ao agredido. É como se precisasse de sensação forte como o ódio para sentir um pouco da própria humanidade, já anestesiada de sentimentos morais.

A jornalista, vítima inequívoca da truculência, afoga-se no mar de ódio que também ajudou a criar. Em momentos outros, ofendeu para ganhar aplausos. Mitou e lacrou. Gerou manchetes e comentários ao constranger e ofender. Fez o mesmo que a gente da mesmice tóxica das redes faz.

No mar tóxico, discute-se a quem defender, jornalista ou deputado. Quem merece aplausos e quem merece cancelamento. Seja pelo fato presente, seja pelos fatos passados e nunca esquecidos, porque na internet não há esquecimento. É do veneno das relações discutir pessoas e não o que elas fazem. Odiar pessoas e não o odiável de que são capazes.

Deputado e jornalista acham que alimentar ódios é fazer política. Mas política é a difícil arte de convivermos. E de sermos capazes de fazermos algo juntos mesmo sendo todos nós diferentes uns dos outros. Odiar alguém nos une, mas à custa de excluir o odioso. É política tóxica como as redes. Que desune o todo para unir a parte.

Política é jogo de diferenças jogado em instituições que só tem sua razão de existir como o lugar dos rituais que convertem antagonismos em decisões e ações. Ainda que deixe gente contrariada e insatisfeita pelo caminho. Política com unanimidade é ilusão dos tolos e sonho dos tiranos.

Não faltam momentos históricos em que candidatos a tiranos encontram tolos suficientes para calar os divergentes. Para pasteurizar ainda mais a vida. Para excluir ainda mais os que são diferentes. Os singulares. Os que pensam e sentem como só eles pensam e sentem. Diferente dos tolos, que pensam o que os outros pensam e sentem ódio por quem pensa diferente. Odeiam porque o fato de alguém pensar diferente faz lembrar ao tolo o quanto ele é tolo.

O ódio é o mar onde a besta da tirania se alimenta do ressentimento dos tolos antes de devorá-los.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli

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