Se aproxima o dia 2 de outubro, que decidirá o destino público do país. As consequências da escolha política serão sentidas por todas e todos e todes. Parcela numerosa da classe média (média e alta) votará no desgoverno em curso, que não valorizou a criação de empregos, os salários e a distribuição de renda. Nada de positivo contabilizou na saúde e na educação, enquanto na segurança legalizou o arsenal de armas de organizações criminosas. As lorotas vocalizadas com cara de pau na propaganda eleitoral não conseguem ocultar o mandato premeditado para a destruição e o caos.
O indicador de voto dos segmentos intermediários retrata (conscientemente ou não) a herança de 350 anos de escravidão, cuja Abolição: (a) não contemplou indenizações pecuniárias por séculos de trabalhos forçados; (b) não efetuou uma reforma agrária para dar a propriedade de terras aos ex-escravizados, confinados nas lides da agricultura e da pecuária ou do extrativismo e; (c) não promoveu ações para preparar os libertos, de modo a se integrarem nos processos de industrialização e urbanização, que se desenvolviam. A fim de “branquear” a nação, privilegiou-se a mão de obra dos brancos despejados da Europa. A opção das classes médias pela direita, hoje, reafirma a velha história de exclusão social desse país continental. Não espanta que 70% dos mais ricos apoiem os cortes orçamentários na ciência e nas universidades (Unifesp, 2022). Haja presente para tanto passado obscurantista.
É motivo de orgulho para os verdadeiros democratas, na dimensão da política e na dimensão étnico-social, votar no espectro da esquerda. São os “anjos tortos” do verso de Carlos Drummond de Andrade, que se batem para interromper a perpetuação da marginalidade do povo que, apesar de produzir as riquezas, não usufrui as benesses do progresso. Os trabalhadores não tinham casas para morar, embora construíssem as de bacanas. Para que rememorassem a lição de retaliação do período colonial-escravista, viram condenado à prisão mesmo sem provas o presidente que implementou o Minha Casa, Minha Vida, voltado para o precariado de vencimentos ralos e existência sofrida.
Como as demais políticas igualitaristas, iniciadas no governo Lula da Silva, aquela foi devastada e os recursos disponíveis na Caixa Econômica Federal (CEF) reendereçados para a construção de condomínios de luxo. O vice golpista Michel Temer, seguido pelo “capitão do mato” Jair Bolsonaro de braços com o medíocre ministro da Economia Paulo Guedes, trouxeram de volta a pobreza e a miséria, com a reforma trabalhista e previdenciária e as privatizações do patrimônio público estratégico, recolocando o país no mapa da fome da ONU. Em troca, veio à tona um nacionalismo carnavalizado pelo verde-amarelo característico do entreguismo na Petrobrás, no Pré-Sal etc.
Para Jessé Souza, as acusações de corrupção, outrora dirigidas a Getúlio Vargas e a Juscelino Kubitschek, acusado de possuir um apartamento em zona nobre do Rio de Janeiro, fruto de propina, foram estendidas ao ex-presidente com extração no movimento sindical do ABC paulista. Todas as acusações mostraram-se falsas. Tratou-se de um estratagema. Como não caía bem se contrapor de forma aberta às políticas que combatem desigualdades sociais, uma bandeira universal, procurou-se desqualificar e castigar os mentores do igualitarismo com outra bandeira universal, o combate à corrupção. A serviço dos poderosos, a mídia venal e partidarizada reverberou a enxurrada de denúncias vazias para justificar as vilanias, lançadas às administrações que visavam retirar as pedras do escravismo do caminho para a modernidade, em cada esquina do pós-1950.
O autoritarismo da sociedade brasileira, para se legitimar, precisa bloquear a eclosão dos conflitos. A exposição das contradições encarnadas nas iniquidades, por si, nega a imagem de um paraíso indiviso (“meu partido é o Brasil”). A identidade nacional, ao enaltecer o caráter pacífico e ordeiro do povo, naturaliza o verticalismo nas relações sociais, assim como o racismo e o sexismo. A ideia do “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, torna inócuas as normas legais para as camadas privilegiadas e coroa o status quo pela via dos laços clientelistas e de parentesco, ranços antidemocráticos e antirrepublicanos ainda vigentes. Esse é o desenho de país das ditas “elites”.
Como na fábula de George Orwell, A Revolução dos Bichos, “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. Uma afronta à regra da impessoalidade que orienta o ideal de uma República, que mereça tal conceituação. A tolerância do bolsonarismo com os malfeitos de seu mítico “animal” tem raízes culturais. A bandeira contra a corrupção deve ser guardada no armário, e desfraldada nas ocasiões em que as forças populares alcançam o Executivo Federal.
O teatro da política no SBT
O cenário eleitoral mostra uma aparente e fajuta fragmentação político-ideológica. Cabe recapitular o debate realizado no pool de emissoras, encabeçado pelo SBT, para verificar de que maneira o sistema de exclusão se reproduz com roupagens adaptadas à atualidade, para enganar os eleitores. A hegemonia da “casa grande” busca se reproduzir no tempo, conforme o aristocrático conselho que se lê em Lampedusa: “para que tudo mude e continue no mesmo lugar”. Vejamos como acontece.
Lula (PT) não compareceu. No teatro montado, se disse que temeu apresentar sua proposta de governança. Ora, o PT foi o único partido que permitiu dezenas de milhares de pessoas, sem filiação partidária, a incidir na peça programática com sugestões de temas e proposições concretas. Muitas foram acolhidas, pela equipe de coordenação. Em 2018, a emissora não se referiu à ausência da candidatura apontada como favorita no pleito, impedida de participar por um conluio jurídico-midiático-militar dos “donos do poder”. A operação farsesca, agora, é do conhecimento geral.
O Padre Kelmon (PTB) compareceu montado na cruzada contra o aborto, posta no centro da política. Para o obscurantista, é uma “questão filosófica”, não um grave problema de saúde pública. O Estado seria o gendarme de controle da vida privada das mulheres, para obrigá-las a aceitar uma gravidez indesejada ou resultante de estupro. A distopia que arguiu é autoritária e totalitária. No debate, revelou a vassalagem das religiões com fiéis usados para massa de manobra de tiranos.
Felipe D’Ávila (Novo) e Soraya Thronicke (União Brasil) competiram pelo papel de principal ator do neoliberalismo, ao difamar funções do Estado e fantasiar virtudes do livre mercado. Pregaram mais Estado na economia (para as desregulamentações) e menos na política (sem intervir na marcha que conduz a monopólios ou oligopólios). Vestem o figurino de CEO de corporações empresariais. Não priorizam a população ou a soberania nacional na globalização, mas o alinhamento aos Estados Unidos. O Novo propõe-se regredir à lógica censitária, onde apenas as pessoas de posses financeiras se candidatam a cargos públicos. Os pobres ficam à margem, no máximo votam. Desejam o retorno dos critérios excludentes da representação política, tirados de cartaz pela democracia moderna.
Simone Tebet (MDB) foi a porta-voz da negacionista e hipócrita “ponte para o futuro”, outro atalho para a regressão do país à condição colonizada de entreposto comercial das potências estrangeiras, abanada pelo vira-lata decorativo beneficiado no impeachment. Questionada sobre o conteúdo de “seu” feminismo, frisou ser católica e contrária ao aborto, curto e grosso. Não lhe ocorreram as palavras mágicas, na memória de qualquer feminista autêntica: “meu corpo, minhas regras”. Parece distinguir entre o “inimigo” e o “adversário”, no embate político travado em um momento crucial.
Ciro Gomes (PDT), flagrado com cochichos acintosos para troca de recados sigilosos com o inominável durante a emissão, é um político tradicional à procura de um destino. Achou-o como escadinha para o neofascismo galgar um perigoso segundo turno, que só traria vantagens para quem deseja conturbar as eleições e substituir o Estado de Direito democrático por um regime iliberal militarizado. O cirismo assassina o brizolismo. Cita o Ceará, e nenhuma realização em Ministérios que ocupou na carreira. Alardeia um receituário ao estilo de um coronel mandonista. Jamais invoca a participação da cidadania, dos movimentos sociais e dos partidos progressistas para reconstruir as bases de um projeto democrático e republicano, com respeito à pluralidade e à (bio)diversidade.
Bolsonaro (PL), este, para variar teceu mentiras. Não pode se vangloriar das ruínas que provocou.
As classes dominantes têm vários partidos políticos que vão da direita neoliberal à extrema direita neofascista, passando pelo trânsfuga que abandonou os valores do humanismo e do trabalhismo. Que o muro que separa a nação de um Estado de Bem-Estar Social, do povo pelo povo, seja derrubado no próximo domingo, com o ardor da indignação e a coragem da generosidade. Vale, aqui, lembrar o poeta Thiago de Mello: “Cantando juntos, ergamos / a arma do amor em ação”.
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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Maria Eduarda Mello e Souza
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