O fim do teto de gastos

No seu discurso de posse no Congresso, o presidente Lula afirmou que o teto de gastos é uma estupidez, e que a medida precisa ser revogada imediatamente.

A reação da mídia e do mercado financeiro, também imediata, foi de dar a esse fato o mesmo tratamento que deram à PEC da Transição, aprovada em dezembro e que permite gastos de 145 bilhões acima do teto: chamar de “gastança” ou “estouro”, dizendo que ameaça a responsabilidade fiscal e a credibilidade do governo brasileiro na gestão da dívida pública.

Economistas ligados ao mercado financeiro e que foram responsáveis por planejar e implementar as políticas neoliberais dos últimos anos são chamados a dar entrevistas na TV para, com ar de sabedoria e intelectualidade, defender o falido regime fiscal de austeridade, responsável por quase uma década de estagnação econômica do país, incapaz de recuperar o crescimento econômico de forma sustentada.

Afirmam que o excesso de gastos do Governo Dilma foi a causa da crise de 2014-16, uma narrativa que não se sustenta numa simples análise descritiva das receitas e despesas reais do governo federal – os déficits do período foram causados pela perda de receita, não por aumento nos gastos, e os déficits são consequências da crise, e não sua causa. Além disso, esses mesmos economistas ignoram que a austeridade iniciada em 2015, antes do teto, na gestão de Joaquim Levy na Fazenda, foi um dos fatores que aprofundou a crise econômica.

Apesar disso, para ser capaz de incluir no orçamento os múltiplos interesses da população brasileira, como prometido no período eleitoral, e também reconstruir o pacto social da Constituição de 1988, substituir o teto de gastos por um novo regime, capaz de aliar responsabilidade fiscal e políticas públicas inclusivas, é a primeira grande batalha que o novo governo Lula precisa vencer.

Para isso, é essencial desfazer essa falsa ideia de que não há responsabilidade fiscal sem o teto de gastos, ou de que o teto é benéfico e importante para a economia brasileira. O resultado desse embate será crucial, e irá definir os limites e as possibilidades colocadas no orçamento federal não só nos próximos quatro anos, mas para o futuro do país nas próximas décadas, pois a destruição e desorganização da capacidade estatal compromete permanentemente as possibilidades de políticas públicas efetivas na esfera federal.

Para quem não está familiarizado com o problema ou não se lembra de que se trata, o teto de gastos, aprovado como uma Emenda Constitucional em 2016 no governo Temer, estabelece um limite fixo de gastos em termos reais por 20 anos no orçamento federal – a despesa total do orçamento de 2016 é corrigida anualmente pelo IPCA, índice de inflação usando como meta de inflação pelo Banco Central, criando um teto para os gastos federais em termos reais.

Trata-se de uma experiência única no mundo, invenção original da ortodoxia econômica brasileira que cria uma camisa de força na esfera pública, num irracional regime de austeridade permanente – mesmo que a receita cresça e o PIB cresça, como esperam os autores dessa regra, nenhum aumento de receita pode se refletir em maior despesa.

O objetivo é garantir uma política de austeridade que, assumindo crescimento das receitas num cenário econômico favorável, levaria a resultados primários superavitários e uma gestão da dívida pública sustentável, garantindo o pagamento de juros aos credores do Estado e a rolagem da dívida. Esse regime fiscal se sobrepõe às regras ainda vigentes da Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000, que estabelece a meta de resultado primário, os relatórios bimestrais de execução orçamentária e seus mecanismos de controle.

Indo direto ao ponto, a estupidez do teto de gastos está não só na manutenção dos gastos em patamar congelado em termos reais por 20 anos, mas também na contradição gerada no orçamento federal entre as despesas obrigatórias, definidas por lei e que devem necessariamente ser executadas, e as despesas chamadas discricionárias, ou opcionais: na medida em que as despesas obrigatórias crescem, por decorrência de elementos fora do controle do governo, como dinâmicas populacionais ou decisões legais ou judiciais, as despesas discricionárias são pressionadas para baixo.

Nesse sentido, enquanto gastos de seguridade social, aposentadorias, assistência social, seguro-desemprego, salários de servidores públicos, ou precatórios, crescem por fatores externos, as despesas discricionárias precisam cair, para atender o limite estabelecido pelo teto de gastos.

Essas despesas discricionárias estão relacionadas a orçamentos de ministérios, que apresentam, em sua maioria, severos cortes orçamentários em termos reais desde 2015, e correspondem a diversos serviços públicos essenciais: educação pública federal, pesquisa e desenvolvimento científico, saúde pública federal, políticas de proteção ambiental e biodiversidade, políticas de proteção e direitos indígenas, políticas para família, mulheres, direitos de crianças e adolescentes e direitos dos idosos, inclusão racial e ações afirmativas, políticas de incentivo à cultura, política de reforma agrária, orçamentos de agências reguladoras de setores econômicos estratégicos, formação de estoques reguladores, orçamento para crédito agrícola subsidiado e agricultura familiar, dentre diversos outros segmentos fortemente afetados pela redução de recursos orçamentários.

As consequências desse processo são óbvias: um gradual processo de estrangulamento dos serviços públicos, destruindo a capacidade do governo de prover os mesmos com a mesma qualidade e/ou abrangência. Isso se reflete nos aterrorizantes resultados apresentados pelo Relatório do Gabinete de Transição, que atestam a destruição das políticas públicas federais em diversas áreas ao final de 2022. Se nada for feito, essa tendência vai continuar.

Ao mesmo tempo, o teto também gera uma pressão por redução das despesas obrigatórias, motivando a reforma da previdência aprovada em 2019, precarização das carreiras de servidores públicos, e outras medidas que reduzem a abrangência dos gastos obrigatórios, com repercussões principalmente sobre aposentados e pensionistas do INSS. Aumentos do salário mínimo também geram pressões de aumento em gastos obrigatórios, aumentando a pressão de redução de gastos discricionários em termos reais.

Portanto, a gestão de Jair Bolsonaro, capitaneada na área econômica por Paulo Guedes, apesar de inteiramente responsável por suas medidas inescrupulosas, nada mais fez do que aprofundar e dar continuidade a um projeto de destruição do Estado concebido anteriormente, no Governo Temer e Meirelles. A agenda de “reformas liberalizantes”, que prometia solucionar os problemas econômicos do país, solucionar o desemprego, aumentar a credibilidade e os investimentos privados, teve como principal consequência levar o país a um período de oito anos de estagnação econômica: apenas ao final de 2022 o PIB real brasileiro volta a se aproximar do mesmo patamar do PIB ao final de 2014.

Essa estagnação também levou ao péssimo desempenho das receitas líquidas na esfera federal, tornando impossível um retorno aos patamares de superávit primário anteriores a 2014. A chamada “ponte para o futuro” proposta pelo governo golpista em 2016 mostrou-se, na verdade, uma ponte para a estagnação e para o fracasso do Brasil enquanto sociedade. Portanto, mesmo após a derrubada do governo de Jair Bolsonaro, essa tendência de precarização dos serviços públicos no longo prazo irá continuar, caso nada seja feito.

Assim, o primeiro passo para restabelecer um projeto de nação coerente com a redução da desigualdade e de um papel ativo do Estado em prover políticas eficazes de combate aos principais problemas sociais do país passou por derrotar o governo Bolsonaro nas urnas. O segundo e próximo passo será recriar as instituições para garantir a inclusão dos direitos da população no orçamento, ao mesmo tempo em que se garantem as condições de sustentabilidade do endividamento público. Para isso, transformar o atual regime fiscal é necessário, de forma que seja capaz de corrigir as contradições existentes, e também colocar a economia brasileira em novo rumo, em direção a um futuro verdadeiramente inclusivo e de esperança para a população brasileira.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

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