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Capitalismo e as Big Pharma

Tendo como gancho a explosão da bolha das Americanas, artigos recentes de Luiz Gonzaga Belluzzo e João Furtado (1) tratam do atual padrão de acumulação das empresas, enfatizando a agressiva estratégia da extração de valor por parte dos acionistas, cujo negócio são os papéis, independentemente dos produtos tangíveis por elas produzidos ou comercializados. E, digo eu, dos padrões éticos envolvidos no processo.

É de Belluzzo o seguinte trecho “Nos anos 1960, tempos dos oligopólios de Berle e Means e dos gerentes obcecados com o crescimento da empresa no longo prazo, a cada 12 dólares gastos com a compra de máquinas ou construção de novas fábricas, apenas 1 dólar era gasto com os dividendos pagos aos acionistas. Nas décadas seguintes, a proporção começou a se inverter: mais dividendos, mais ‘juros sobre o capital próprio’ e menos investimentos nas fábricas e na contratação de trabalhadores”. E no dizer de Furtado “[o estouro da bolha]… é produto de um modelo empresarial parasitário, em que os controladores têm pouco interesse no negócio e estão preocupados, sobretudo, com os resultados financeiros, mesmo que à custa do negócio e de sua sustentabilidade”. Já, boa parte dos executivos se interessa mais por sua própria sobrevivência nas cadeiras que ocupam, à mercê dos controladores de olho naqueles resultados.

A crise das empresas dos três bilionários é um exemplo extremo de descompromisso com as finalidades intrínsecas do empreendimento. Se a “inconsistência” não fosse descoberta agora, seguiriam e em algum momento passariam o mico preto adiante. Mas penso que não é o desastre (principalmente para os trabalhadores, algo como 50 mil) o que define o modelo, pois há setores industriais prósperos, sem ter a curto prazo a sua sustentabilidade ameaçada, mas que abraçam a mesma extração desenfreada de valor. Pode haver outros, mas certamente um dos mais importantes é a indústria multinacional de medicamentos e vacinas que, a partir de meados da década de 1990, passou a ser chamada de Big Pharma.

Em 2014, publiquei um artigo na revista Facto, da ABIFINA, intitulado “Os Dilemas da Big Pharma”, que iniciava com duas declarações de dirigentes de grandes farmacêuticas, declarações separadas por 60 anos. Em 1952, um herdeiro da empresa Merck, então membro do seu conselho de administração, afirmava como princípio da empresa: “We try never to forget that medicine is for the people. It is not for the profits. The profits follow, and if we have remembered that, they have never failed to appear. The better we have remembered it, the larger they have been”(2). Já em 2014, o presidente executivo (CEO) do ramo farmacêutico da Bayer, Marijn Dekkers, apresentava a estratégia da empresa que dirigia: “We did not develop this medicine for Indians. We developed it for western patients who can afford it.”(3).

Considero que a indústria farmacêutica multinacional retrata com perfeição e amplia a análise de Belluzzo e Furtado. E me pergunto que voltas o mundo deu no tempo que separa as duas frases – tão opostas em seu conteúdo – ambas ditas por dirigentes de grandes companhias farmacêuticas? Foi nesse intervalo que a indústria farmacêutica dos Estados Unidos e da Europa gerou o padrão atual de condução dos negócios nesse setor, responsável por um mercado global que vale hoje cerca de um trilhão e meio de dólares em um regime de cada vez maior oligopolização, com 20 empresas respondendo por cerca de metade desse mercado gigantesco.

Tendo como pano de fundo a estratégia geral da extração de valor como padrão dominante de acumulação, a metamorfose da indústria farmacêutica para tornar-se Big Pharma envolveu várias estratégias específicas, todas elas ancoradas em uma arrastada crise em sua capacidade de desenvolver e produzir moléculas verdadeiramente novas e eficazes. As estratégias foram variadas, dentre as quais se destacam:

  1. Operações de fusões e aquisições (M&A) cujo objetivo é adquirir os projetos mais promissores das empresas fundidas ou compradas. As dez maiores operações de M&A entre 1999 e 2019 movimentaram 672,5 bilhões de dólares672,5 bilhões de dólares (4). Em outros termos, essas operações visam adquirir as moléculas mais promissoras no pipeline das compradas ou fundidas, sendo o tamanho da promessa medido pela régua do mercado potencial no caso de sucesso, ausente o impacto sanitário. Daí o desinteresse por antibióticos e outros medicamentos que não sejam de uso contínuo, ao longo da vida dos usuários. Contribuiu para o desenvolvimento dessa estratégia o deslocamento da rota tecnológica predominante na indústria, da síntese química para as biotecnologias.
  2. A decisão de diminuir radicalmente a verticalização nas empresas, com o objetivo de compartilhar riscos com terceiros. Atualmente, há empresas que terceirizam o desenvolvimento, a produção, o processo de registro (ensaios pré-clínicos e clínicos) e o marketing dos produtos que têm sua marca. O principal ativo que detêm é a propriedade intelectual sobre as patentes envolvidas.
  3. A radicalização no terreno da propriedade intelectual visando fortalecer interesses comerciais, em detrimento do interesse público. Os acordos TRIPS de 1994 foram o pontapé inicial desse processo. Esses acordos não dizem respeito apenas à indústria farmacêutica, mas a maior parte do contencioso patentário mundial cabe, desde então, a ela. Exemplo eloquente desse contencioso e do poder da Big Pharma foi a disputa na OMC durante a pandemia de COVID-19 pela liberação da proteção patentária das vacinas enquanto ela durasse.
  4. A entrada no mercado de medicamentos genéricos e biossimilares, que deixaram de ser ‘criminalizados’ na medida em que a Big Pharma passou, ela mesma, a produzi-los e comercializá-los.
  5. A proposição de programas que visam a aproximação entre empresas farmacêuticas e a comunidade científica, com vistas a tornar mais fluido o fluxo de conhecimento ‘translacional’ (da bancada de pesquisa para as empresas).
  6. O fortalecimento das relações entre as empresas da Big Pharma com os poderes dos países-sede de suas matrizes ou daqueles em cujas bolsas elas negociam seus papeis. Nos Estados Unidos, as farmacêuticas são o segmento industrial que há vários anos mais vêm desembolsando recursos financeiros com atividades de lobby junto ao legislativo.
  7. Finalmente, a inauguração (ou aprofundamento) de estratégias comerciais altamente heterodoxas, em particular nos terrenos de comercialização de produtos off-label, de promiscuidade no relacionamento com profissionais e gestores de saúde e também a manipulação de dados de ensaios clínicos. Multas judiciais gigantescas têm sido infligidas a várias dentre as maiores farmacêuticas. O problema está em que, por maiores que sejam, apenas arranham o aumento do faturamento auferido a partir das fraudes.

Essas estratégias vêm sustentando o crescimento das farmacêuticas globais haja vista, inclusive, os produtos dessa indústria serem bens essenciais à sobrevivência dos humanos, diferentemente da grande maioria dos produtos vendidos pelo varejo das empresas do trio controlador das Americanas. Em função disso, a regulação estatal do desenvolvimento e produção de medicamentos e vacinas é muito mais rigorosa. Entretanto, mesmo que a Big Pharma seja ainda florescente, podemos indagar se não haverá um limite para o poder dos acionistas controladores das empresas sobre os executivos que, cada vez mais, têm seus limites éticos anestesiados pelos gigantescos dividendos recebidos.

Referências:

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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