Os Tribunais Superiores, em especial o STF, constituem hoje o mais importante obstáculo ao recrudescimento do neofascismo no país

Como lembrado há pouco no artigo “O Supremo: de avalista a anteparo do avanço autoritário“, o recente julgamento pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que declarou a inelegibilidade do Boçal, por oito anos, além de suscitar os esperados – embora tímidos – protestos de seu rebanho de adeptos, foi também, e surpreendentemente, criticado por alguns setores democráticos do centro e, mesmo, da esquerda.

Pois agora, malgrado a demonstrada improcedência jurídica e política de tais críticas, estas vozes novamente se insurgem contra outras decisões – desta feita do Supremo Tribunal Federal – invocando idêntica e surrada argumentação, acerca da suposta “invasão”, pela Corte, da competência privativa do Parlamento e/ou do Executivo, fruto da “judicialização da política”, nelas vislumbrada.

Segundo os críticos, isto teria ocorrido em três ocasiões, relativas a julgados proferidos neste mês de agosto, a saber:

  • (i) a confirmação pelo Plenário, em julgamento virtual, de decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes, proibindo a remoção compulsória e violenta, por parte de agentes de Estados e Municípios, de pessoas em situação de rua;
  • (ii) a adoção da descriminalização do porte de pequena quantidade de maconha para uso próprio;
  • (iii), novas determinações de busca e apreensão de objetos,  telefones celulares e documentos de auxiliares do ex-presidente da República, e dele próprio, na investigação do desvio de joias integrantes do patrimônio público nacional.

Não lhes assiste razão, mais uma vez, em relação a todas e cada uma destas hipóteses – como é fácil demonstrar. A começar pelo primeiro caso, quando o Supremo se limitou a examinar, no estrito exercício de sua atribuição constitucional, a adequação – na verdade a inadequação – frente à Lei Maior, de atos administrativos praticados por servidores de Unidades da Federação, usando ilegalmente meios coercitivos na remoção de moradores de rua. Devidamente provocado por partido político e movimento social, ambos a isso habilitados, a Suprema Corte, unanimemente, flagrou a frontal contrariedade destas ações à Política Nacional de População em Situação de Rua, programa instituído por lei, na conformidade da Constituição Federal – e determinou às autoridades responsáveis o cumprimento destas normas legais, assinando-lhes prazo a tanto e requisitando a devida prestação de contas.

Como enxergar violação de competência nesta decisão – além do mais, oportuna e necessária? Muito ao contrário, ao assim decidir, o guardião último dos direitos humanos da cidadania – inclusive, e até prioritariamente, nunca é demais lembrar, dos cidadãos e cidadãs vulneráveis, como o são as pessoas forçadas a viver nas ruas – simplesmente exerceu sua função mais nobre, sendo as censuras que recebeu a propósito disso, portanto, destituídas de qualquer fundamento – jurídico, político ou moral. E, da mesma forma, no que se refere à apreciação de recurso interposto pela Defensoria Pública de São Paulo – em julgamento que ainda não foi concluído – ao fazer o cotejo de dispositivos de lei federal, a chamada Lei Antidrogas (Lei n. 11.343/2006), frente à Carta Magna, cumprindo sua tarefa precípua, como Corte Suprema, de exercer o chamado controle da constitucionalidade das leis.

Para melhor compreensão do que estava, e ainda está sendo julgado neste processo, bem como para evitar confusões comuns nesta matéria, convém fazer previamente algumas distinções conceituais. Assim importa, inicialmente, diferenciar as três posições que o Estado pode assumir em face das condutas relacionadas ao consumo pessoal de drogas – consideradas como tais as “…substâncias ou os produtos capazes de causar dependência…” (artigo 1º, § único, da referida lei), a saber: despenalizaçãodescriminalização e legalização. A primeira consiste em, mesmo mantendo a tipificação da conduta – isto é, sua previsão abstrata como crime, em um tipo penal – deixar de prever, como consequência legal para sua prática, a imposição de pena privativa de liberdade. Já descriminalizar significa não mais considerá-la criminosa, tornando-a penalmente indiferente: malgrado considerada ilícita, acarretando sanções jurídicas de outra espécie – por exemplo, administrativa – seu cometimento não mais acarretará a imposição de sanção penal de qualquer natureza. Por fim, legalizar importa na adoção, pelo Estado, de medidas de saúde pública de controle de uso de drogas, inclusive sua administração, sob prescrição e acompanhamento médicos, à população dependente, devidamente catalogada e assistida.

Tendo em vista isso, cabe ressaltar que o diploma legal em questão, diferentemente dos anteriores, já despenalizara as condutas relacionadas ao uso próprio de drogas, de tal sorte que, desde que entrou em vigor, sua prática não mais resulta em aplicação de pena de prisão – mas apenas de sanções restritivas de direitos (artigo 28, caput e incisos).

Destarte, deve-se ter bem presente que, no caso em questão, foi o próprio Congresso Nacional que, há quase 20 anos, se encarregou de diferenciar claramente as consequências jurídicas dos comportamentos relacionados ao porte, posse e cultivo de drogas, conforme sua finalidade – consumo próprio ou destinação a terceiros, aí incluído o tráfico –, tratando de despenalizar aqueles. O que estava, e ainda está sendo julgado no processo em questão, diz respeito justamente aos critérios legais de diferenciação destas ações, e nisso consiste o primeiro ponto tratado no julgamento ainda em curso.

Ocorre que o § 2º do dispositivo legal acima referido, lista os pontos que devem nortear o intérprete ou aplicador da norma na identificação da finalidade das referidas condutas, dentre as quais avultam a natureza e a quantidade de droga, além das circunstâncias que as revestirem. Evidentemente, a imprecisão e vaguidade desta fórmula legal – como sói acontecer em matéria penal – têm feito com que, na prática da aplicação da lei, por autoridades policiais, durante o inquérito, e promotores e juízes, na fase processual, tenham prevalecido os seculares estigmas da seletividade racial e social que presidem o funcionamento dos sistemas de justiça e de segurança pública no Brasil, há séculos. Não por outra razão, jovens negros e pobres, habitantes das periferias das cidades brasileiras, pelo simples porte de pequenas quantidades de entorpecentes, são rotineiramente remetidos para as superlotadas cadeias e penitenciárias, onde se tornarão massa de manobra das facções que as controlam.

Por isso, ao apreciar a questão, cinco ministros, seguindo a tendência prevalente em outros países ocidentais, votaram no sentido de declarar a inconstitucionalidade da norma penal incriminadora dos fatos associados ao consumo próprio de pequena quantidade de maconha – importante ressaltar, apenas de maconha – por considerar que a mesma ofende ao princípio constitucional da liberdade individual. Já outro juiz, o mais moderno do Tribunal, divergiu dos colegas, por entender que a aludida regra não contraria aquele preceito. E, ainda antes do pedido de vistas de outro julgador, o que interrompeu o julgamento, restou também por apreciar o novo critério, de natureza objetiva, a ser futuramente adotado para diferenciar a finalidade daqueles comportamentos – qual seja, a quantidade de maconha caracterizadora da intenção de uso próprio, havendo a respeito sugestões que variam desde cinco até cem gramas.

Abstraída a opinião que se tenha acerca do tema, o que interessa aos efeitos deste despretensioso artigo é demonstrar que, também no particular, o STF, no julgamento ainda em curso, restringiu-se ao exercício de suas funções como vértice do sistema judicial, ao qual cabe, em última análise, declarar a conformidade ou não das regras legais à Constituição Federal. Pareceria até desnecessário lembrar, não fora a impertinência das críticas recebidas a este respeito, que interpretar a lei não significa legislar…

Não merecem melhor sorte as irresignações, de idêntico jaez às anteriores, esboçadas a propósito das novas, e oportunas medidas investigativas autorizadas pelo Supremo Tribunal à Polícia Federal, diante dos indícios veementes de apropriação indevida, por parte de pessoas do entorno do anterior ocupante da cadeira presidencial, de objetos recebidos pelo País como presentes ou lembranças de autoridades estrangeiras. Senão, vejamos.

Convém sempre lembrar que, ainda no começo de 2019, diante dos violentos ataques desferidos por aquele governante, desde que assumiu, contra as instituições e, em especial, a Suprema Corte, seu então presidente, com respaldo integral de seus pares e com base no disposto no artigo 43, caput, do Regimento Interno do STF – que tem status normativo de lei – determinou a abertura de inquérito. Cabe recordar igualmente que as apurações a partir daí procedidas, com eficiência e em estrita obediência aos ditames legais pela Polícia Federal, sob a supervisão diligente do ministro Relator, Alexandre de Moraes, ocasionaram o desdobramento daquele em novos inquéritos, a ele conexos, abertos para investigar outras condutas, também interligadas às investidas do Boçal contra o regime democrático.

É o caso da veiculação de notícias falsas, as famosas fake news, a partir de “gabinete do ódio” montado no próprio Palácio do Planalto; da mobilização permanente de seus acólitos pelo líder neofascista, ameaçando várias vezes a deflagração de golpe de estado, o que levou aos atos violentos praticados antes, durante e após o episódio eleitoral do ano passado; da falsificação de atestados de vacina seus e de familiares e auxiliares, para permitir-lhes viagem aos Estados Unidos; e também, mais recentemente, de seus escandalosos movimentos para apropriar-se de joias, relógios e outros objetos recebidos de chefes de Estado estrangeiros, subtraindo-os assim do patrimônio nacional.

Como demonstrado até o momento, todos estes fatos estão indissoluvelmente ligados, evidenciando a instalação, no centro do poder, de uma autêntica organização criminosa, dedicada à realização de projeto político autoritário e antidemocrático, responsável pelo cometimento de diversos atos atentatórios ao Estado de Direito – inclusive de tipo terrorista. O espantoso assalto aos bens públicos, recebidos pelo ex-chefe do Executivo, em nome e para a nação, integra assim, o conjunto da nefanda obra a que ele e sua súcia se dedicaram ao longo de mais de quatro anos – e as providências determinadas à Polícia Federal, a seu pedido, no âmbito das apurações em boa hora desencadeadas pelo Supremo, constituem a reação legal, necessária e oportuna das instituições democráticas contra seus ofensores.

Ademais, o desnudamento dos crimes praticados pelo bando miliciano que se instalou no Planalto – e dele removido pela vontade popular, apesar de todas as tropelias feitas contra a normalidade do pleito presidencial do último ano – também auxilia na desmontagem do indevido aparelhamento militar da administração pública federal, estratagema usado pelo tosco dirigente para manter-se no poder. A propósito, as mais recentes e minuciosas pesquisas de opinião pública, também evidenciam o acerto das decisões tomadas pelo STF, bem como dos movimentos políticos encetados pelo atual governo – amplamente apoiados da população. E, da mesma forma, a abrupta queda dos índices de aprovação dos militares, comprova a necessidade de seu afastamento da disputa política e retorno às suas atividades profissionais – recado que os altos comandos parecem ter entendido.

Por fim, e mais importante – embora pareça despercebido por alguns críticos – a análise atenta da atual situação política brasileira aponta para o reconhecimento de que, embora tenham cometido erros no passado recente, os Tribunais Superiores, mormente o Supremo, neste momento, constituem o mais importante obstáculo ao recrudescimento do neofascismo. Se isto por certo não os isenta de críticas, recomenda-se ao menos um maior cuidado ao fazê-las. (Publicado no Sul 21, em 31/08/2023)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  
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