As emissões de gases que provocam o efeito estufa elevam a temperatura ambiente, perturbando a atividade econômica e a vida social. Os riscos desse fenômeno, considerados relevantes apenas pelos climatologistas até o século passado (1), passaram a ser percebidos como preocupantes pelos agentes econômicos no início do século atual. Temperaturas inusitadas, queimadas florestais e cheias torrenciais tornaram esses riscos perceptíveis nos últimos anos.

Os países industriais têm adotado medidas para mitigar esses riscos, porém existe a consciência de que é indispensável uma inflexão na organização da vida econômica e social para evitá-los. Para ser efetiva, essa inflexão necessita ser coletiva e global. Ela afetará de forma determinante o crescimento econômico e a organização social dos países, especialmente daqueles que ainda não contam com sistemas industriais plenamente desenvolvidos.

O IPCC foi estruturado para operar como fórum cooperativo global, visando a induzir essa inflexão. Seus compromissos estão centrados em duas dimensões: preservação de florestas e redução do consumo de combustíveis fósseis. Na Conferência de Paris, os países assumiram compromissos voluntários para diminuir seu desmatamento e seu consumo de combustíveis fósseis. Ainda que relevantes, os climatologistas consideram que esses compromissos são insuficientes para evitar mudanças climáticas potencialmente catastróficas para a vida planetária. A redução do consumo global dos combustíveis fósseis é peça-chave na contenção das mudanças climáticas, porém essa tarefa não é simples.

Os combustíveis fósseis estão no cerne da atividade industrial. Atualmente, o petróleo garante a logística de transporte e o suprimento de energia da atividade industrial de base. A rápida redução do seu consumo terá efeitos socioeconômicos e geopolíticos de difícil gestão. Os riscos de uma transição rápida para uma economia de baixa intensidade petrolífera são muito elevados. (2)

A AIE publicou recente estudo analisando três cenários para a transição energética. O primeiro deles estuda as emissões caso seja dada continuidade às políticas econômicas e energéticas adotadas atualmente pelos países industriais. Nesse cenário, as emissões serão crescentes e as mudanças climáticas serão aceleradas. O segundo analisa a redução que será obtida nas emissões se os países cumprirem as metas acordadas em Paris, o que não vem ocorrendo (sic).

Nesse cenário, o ritmo das mudanças climáticas será arrefecido, mas insuficiente para evitar a elevação da temperatura para patamar superior ao considerado seguro pelos climatologistas. O terceiro estuda as mudanças necessárias para atingir o objetivo de emissões zero em 2050, considerado necessário para evitar mudanças climáticas nocivas à vida planetária. Ele assume que as tecnologias para alcançar esse objetivo estão disponíveis, porém sua adoção exige forte disposição política para implementá-las.

O relatório constata que os investimentos globais em fontes renováveis de energia estão crescendo fortemente (50% nos últimos 10 anos) graças aos incentivos governamentais. Esses investimentos, atualmente situados em US$ 1,3 trilhão, deverão alcançar o patamar de US$ 2 trilhões em 2030. Esse movimento provocará a queda da parcela dos fósseis no suprimento de energia de 80% da demanda global de energia atual para 75% em 2030 e 60% em 2050. Essa trajetória sugere que o crescimento econômico assentado nos combustíveis fósseis será progressivamente abandonado.

Essa perspectiva coloca as empresas petrolíferas diante de um dilema. Continuar investindo, sabendo que a demanda de derivados será estancada em futuro não muito distante, ou reduzir seus investimentos para evitar a desvalorização de seus ativos? Essa incerteza está na raiz da volatilidade que caracteriza o mercado petrolífero nos dias atuais.(3) O relatório da AIE estima que a parcela da Opep no suprimento de petróleo será crescente até 2050 (43%, contra 35% atualmente). No entanto, sua demanda permanecerá concentrada na América do Norte, na Europa e, principalmente, na Ásia-Pacífico. Esse cenário sugere que essa volatilidade não será equacionada tão cedo. Os problemas socioeconômicos criados por essa questão ficaram patentes após as sanções impostas pelos países da Otan às importações de hidrocarbonetos da Rússia: inflação, redução dos investimentos e aumento sensível das desigualdades socioeconômicas.

No Brasil, a transição energética foi deslanchada na segunda metade do século passado. A limitada disponibilidade de recursos fósseis e o vasto potencial hidrelétrico induziram o sistema elétrico a ser estruturado em torno de centrais hidrelétricas. Posteriormente, a crise do petróleo induziu o uso de combustíveis renováveis (etanol e óleos vegetais) no sistema de transportes. Atualmente, as hidrelétricas respondem por cerca de 50% do suprimento de eletricidade e os combustíveis renováveis por aproximadamente 25% do suprimento do sistema de transportes.

Os incentivos recentes oferecidos às energias eólica e solar deram novo impulso na transição energética nacional. Essas duas fontes renováveis já respondem por 30% do suprimento elétrico ofertado pelo sistema interligado brasileiro. Entre os países com atividades industriais relevantes, nosso sistema energético apresenta-se como o mais amigável com o clima.

O PDE (2022) da EPE estima que a população brasileira (215,6 milhões de habitantes) seguirá crescendo ao ritmo de 1,1% ao ano.(4) Em seu cenário de referência, o estudo estima que o crescimento econômico será retomado, fruto e reformas econômicas que estabilizarão a inflação e permitirão reduzir o nível de juros básicos da economia. Nesse cenário, o crescimento do PIB situar-se-ia em 2,3% até 2027, aumentando para 3% no quinquênio seguinte. No plano energético, o PDE estima em 2,4% o incremento anual do consumo de energia. Haveria forte redução no consumo de derivados de petróleo (4,5%), porém expansão significativa no consumo de gás natural (1,3%), enquanto o consumo de carvão mineral permaneceria estagnado. O consumo de eletricidade cresceria em ritmo forte (3,4% anuais), com base nas fontes renováveis. Nos transportes, haveria incremento das parcelas do etanol e, especialmente, do biodiesel. O plano antecipa ganhos de eficiência energética apenas entre os consumidores residenciais e os prestadores de serviços.

O PDE estima que o Brasil passará da posição de importador de petróleo para se tornar exportador de volume crescente desse combustível, graças aos reservatórios do pré-sal. A produção de petróleo deverá somar 5,4 Mbd em 2032 e as exportações devem atingir o patamar de 2 Mbd em 2032. Essa situação garante condições privilegiadas para o Brasil se proteger da volatilidade do preço do petróleo no mercado internacional, mitigando os riscos da sua transição energética. (5) Nosso principal desafio consiste na articulação do desenvolvimento da nossa infraestrutura produtiva com a transição energética.

Os países europeus têm adotado políticas climáticas agressivas, objetivando avançar celeremente sua transição energética. Contudo, a América do Norte e especialmente os países asiáticos estão sendo bem mais cautelosos, buscando preservar sua industrialização.(6) Essa realidade indica que o petróleo permanecerá suprindo parte significativa da demanda energética global, ainda que isso aumente o risco das mudanças climáticas. Ela também explica a ênfase dada pelos países industrializados à redução do desmatamento no combate às mudanças climáticas e à retomada dos investimentos multinacionais nas atividades petrolíferas.

Esse cenário coloca o Brasil diante de um duplo desafio. Por um lado, administrar a pressão geopolítica para conter seu desmatamento, especialmente na Amazônia. Por outro, preservar um superávit exportável significativo de petróleo que lhe garanta assento relevante na geopolítica da transição energética. A continuidade da exploração petrolífera nas bacias offshore ainda inexploradas da costa brasileira é dimensão importante desse segundo desafio. A descoberta de vastos reservatórios no pré-sal da Guiana torna necessário um debate cuidadoso quanto ao potencial petrolífero na costa do Amapá. (Original no Jornal dos Economistas do Corecon/RJ)

NOTAS:

  • 1 De Oliveira, A. e Skea, J
  • 2 A guerra na Ucrânia ilustra essa dificuldade. O boicote do petróleo russo pelos países ocidentais provocou forte elevação do custo energético global, com efeitos inflacionários que ainda se fazem sentir. A AIE estima que a continuidade dessa situação provocará a perda do acesso de 70 milhões de pessoas à eletricidade e 100 milhões não poderão cozinhar com combustíveis fósseis (World Energy Outlook 2022, IEA).
  • 3 Nos últimos anos, o preço do barril de petróleo tem oscilado ente US$ 60 e US$100.
  • 4 Bastante superior à estimativa do último censo demográfico do IBGE (203,1 milhões).
  • 5 Política que vem sendo adequadamente conduzida pelo governo atual.
  • 6 Esse cenário indica que o papel do hidrogênio na transição energética será pouco significativo e determinado pelas políticas europeias.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Leia também “A recuperação surpreendente da economia brasileira“, de Paulo Nogueira Batista Jr.