Numa noite de calor insuportável, pessoas cansadas de se distraírem de si mesmas no trabalho, distraíam-se do trabalho às mesas dos vários bares da Rua 19. Naquela região, nenhuma das ruas tinha nome. Eram só números. As pessoas tinham nomes. Também apelidos. Mas para os que não moravam lá, eram só números.
Longe dali, no bairro cheio de glamour e meio vazio de gente, as casas grandes da Rua Desembargador Antero escondiam no seu aconchego climatizado famílias que, das portas para fora, se mostravam felizes como as de comercial de margarina. Porta adentro, relações às vezes ainda mais frias que o sopro de seus muitos aparelhos de ar condicionado.
Na rua 19, um carro barato, mas de motor ágil e silencioso, passou devagar defronte aos bares. Uma, duas, três vezes. De dentro, quatro homens de cara fechada e olhar concentrado miravam os boêmios como lobos à caça de presas furtivas.
Na Rua Desembargador Antero, o silêncio melancólico era interrompido pela passagem de jovens em motos barulhentas. Alguns superavam com gritos alegres e infantis o ronco exagerado das motos.
Na quarta passagem pela Rua 19, bem em frente ao número 121, os dois passageiros do lado direito do carro colocaram canos de armas para fora e dispararam 24 vezes na direção dos três homens que ocupavam distraidamente a mesa 14.
A polícia chegou rápido à Rua Desembargador Antero. Duas viaturas. Quatro policiais ao todo. Vendo que os motoqueiros eram nove, hesitaram entre a interceptação e o pedido de reforço. Optaram pela interceptação. “Parado! Polícia”.
Tombaram ensanguentados os três alvos e outras três pessoas próximas. As outras, corriam amedrontadas, confusamente derrubando e atropelando mesas, garrafas e pessoas. O carro fugiu rápido deixando para trás corpos e cartuchos.
O interrogatório dos interceptados seguiu com falas firmes e secas. Encosta! Desce! Mãos na cabeça! Mandei colocar as mãos na cabeça! Documento! Quantos anos? 17, 19, 18… Número da identidade. Checa aí! RG um, oito, sete… Tem passagem? Tem dinheiro aí? Quanto? É muito dinheiro, está fazendo o quê com tanto dinheiro? Quieto!
Um grito estridente de horror e desespero fez alguns clientes fugitivos olharem a cena do crime. Uma mulher se debruçava sobre um dos cadáveres. Maurício! Não! Não! Fala comigo, Maurício! A polícia demorou a chegar.
O policial reconheceu o Doutor Ferrari, que da calçada defronte à sua casa assistia à cena. “Doutor! Uma hora destas, aqui fora, pode ser muito perigoso”. “Fui eu quem chamei vocês”, respondeu secamente. “Fez bem, Doutor. Hoje em dia, nunca se sabe, mas já estamos checando os elementos”.
Registrou-se e contabilizou-se a cena do crime para inquérito, reportagens e estatísticas. Mais quatro mortos e dois feridos no confronto entre milícias da Região 03. Já é a sexta ocorrência deste tipo neste ano. A Polícia já fez nove operações na região em ações de repressão às milícias que resultaram na apreensão de cinco fuzis, seis granadas, oito pistolas, 12 quilos de drogas; a prisão de três milicianos e oito mortos em resistência às ações policiais.
Doutor Ferrari assiste à notícia das mortes do aconchego de sua casa na Rua Desembargador Antero. Satisfeito com os bons números das ações policiais no combate a esses tantos marginais de sua cidade. Suspira de orgulho de sua rua tranquila já limpa daqueles marginais que lhe atrapalhavam o sossego.
A duas paralelas da Rua 17, Clarice não se conforma pela morte do irmão e seus dois amigos. Desconsola-se por ver seu irmão tratado como estatística. Mais um. “Se a gente fosse importante. Se a gente fosse gente lá de longe, de onde ruas e gente têm nome no lugar de números…”. Interrompeu-se em prantos. Repleta de emoções que não sabia nominar e tampouco quantificar.
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