Palestina
I
Quando o atual ataque de Israel contra Gaza ia lá pelo seu segundo mês, a desproporção entre o número de mortos do lado palestino frente ao dos soldados israelenses falecidos era da ordem de 200 para um, em números absolutos, 16 mil palestinos para 85 israelenses. Do ponto de vista operacional, um nível de eficiência sensacional, insuperável, espetacular e, segundo alguns comentaristas, possivelmente não encontra antecedentes em qualquer outro conflito armado pelo menos desde a II Guerra. Frente à acusação da ONU de que 70% daquelas 16 mil pessoas assassinadas (menos de duas semanas depois já são quase 20 mil e com a mesma proporção) eram mulheres e crianças, o governo de Netanyahu garantia estar voltado a objetivos exclusivamente militares. Neste caso, paradoxalmente, revela um nível de ineficiência assombroso, inigualável, escandaloso e que, consequentemente, deveria ter levado à demissão sumária de toda a cúpula militar do país.
O princípio básico de qualquer enfrentamento bélico – impor o maior dano ao adversário sofrendo o menos possível – deve ser agora levado às últimas consequências sob o nome de transferência de risco. Significa, em primeiro lugar, que um dos lados é significativamente mais bem equipado/armado (mais rico) que o outro e, em segundo lugar, que esteja disposto a produzir o maior número possível de vítimas ligadas de qualquer modo que seja ao inimigo. Dito de outra maneira, os antigamente nominados danos colaterais, as mortes de civis, idosos, mulheres e crianças inclusive, passam desde agora a fazer parte oficialmente dos alvos a serem atingidos. Matar cidadãos desarmados e indefesos passou a fazer parte do negócio. É agora um ato deliberado e uma estratégia político-militar.
Transferência de risco se produz “quando os exércitos levam a cabo a guerra com a premissa de evitar baixas entre suas próprias forças, mas de tal forma que as provocam de forma desproporcionada entre os civis”, diz um especialista. Não custa lembrar que o que forçou a retirada das Forças Armadas americanas do Vietnã, em 1975, não foram as pelo menos 1,1 milhão de vítimas vietnamitas, mas os pouco mais de 58 mil soldados americanos que voltaram para casa dentro de caixões de chumbo.
No primeiro ano da invasão do Iraque, 2003, as tropas de ocupação americanas mataram aproximadamente oito mil civis. Nas duas décadas em que ocuparam o Afeganistão, foram diretamente responsáveis pelas mortes de 12 mil civis. Pouco mais de dois meses depois de iniciado o ataque a Gaza o número de mortos já roça os 20 mil.
II
Israel tem nove milhões de habitantes e em 2022 aparecia como o décimo maior exportador de armas do planeta e o nono maior importador. Ainda que negocie, importe, mas sobretudo venda armas para todo o mundo, inclusive a América Latina, o grande parceiro comercial dos israelenses são naturalmente os americanos. Desde o início do século XXI, “mais de metade do financiamento militar estrangeiro dos Estados Unidos foi para Israel, que por sua vez utilizou uma grande parte destes fundos para comprar armas e tecnologia americanas”, escreve o jornalista espanhol José Luis Marín. Ainda que todo o comércio de armas seja rodeado de muitas névoas e enormes segredos, alguns informes revelam que, de todas as armas compradas por Israel em 2022, 80% foram compradas dos Estados Unidos e 20% da Alemanha. E isso talvez não devesse ser ignorado no momento de tentarmos entender as razões do inquebrantável apoio de ambos os países a Israel, mesmo quando o mundo inteiro se opõe às suas ações mais extremistas.
Quase imediatamente após o ataque do Hamas e o anúncio da invasão de Gaza por Israel, e como era de se esperar, as ações das empresas fabricantes de armas dispararam, em primeiro lugar as do principal fornecedor. Antes que se completasse uma semana do impressionante discurso de Netanyahu, as ações das cinco maiores exportadoras de armas do mundo, todas norte-americanas, tiveram as seguintes valorizações bursáteis: Lockheed Martin 8,87%, Raytheon Technologies 4,36%, Boeing 7,08%, Northrop Grumman quase 11% e, finalmente, General Dynamics 9,35%.
Os europeus também participam do butim. Nesse mesmo período, as ações da britânica “BAE Systems cresceram 7,74%, valor semelhante ao registado pelo grupo industrial italiano Leonardo 5,72%, pelo alemão Rheinmetall 11,85%, a transeuropeia Airbus 2,18%, ou as do grupo francês Thales 7,78% e do grupo Dassault Aviation 6,89%”, noticiou el Periódico de España.
Considerados os lucros que já vinham obtendo com a guerra da Rússia contra a OTAN na Ucrânia, esse será o que se poderia chamar de um imensamente Feliz Natal e mui Próspero Ano Novo para os acionistas dessas empresas e toda a cadeia associada. É evidente que toda essa felicidade implica num substancial suporte na retaguarda para que Israel siga promovendo o genocídio dos palestinos em Gaza. Assim se compra o silêncio do mundo próspero, a nossa tão aclamada civilização ocidental livre e democrática.
III
Numa das fotografias publicadas esta semana, o retrato, de novo, da desproporção, da abismal desproporção que separa uma tragédia da outra, a dor de uns, da de outros. Essa fotografia a que me refiro, uma fotografia limpa e a seu modo, pacífica, mostrava o lamento do que restou de uma família e sua imensa dor pela morte absurda de um filho e de um irmão, um jovem israelense abatido a tiros pelo próprio exército israelense – por engano, naturalmente. Ainda que portasse uma bandeira branca, ao soldado que lhe disparou pouco importava. Vinha de território palestino, só podia ser palestino. Podia e devia, portanto, ser abatido. Mas, não. O sujeito com uma bandeira branca vindo do território inimigo era um daqueles jovens judeus que no começo de outubro havia sido sequestrado pelo Hamas. Assim foi com o filho daquela mulher que na foto lamentava a sua morte e com dois outros tão jovens e tão israelenses quanto ele, abatidos pela truculência desmedida de um exército acostumado e treinado para agir sem limitações de qualquer natureza e acobertado pela arrogância também desmedida do Império e seus parceiros privilegiados.
Mas isso não é o que mais importa nesse final de artigo e sim a fotografia em si. Esta, isolada e limpa, onde uma mãe pode prantear e lamentar pacificamente junto aos seus a perda trágica do filho, e todas as outras imagens, aquelas que exibem cadáveres esparramados no chão dos hospitais bombardeados, ou nas calçadas e nas ruas, atravancando o movimento dos vivos, ou das crianças cujos olhares procuram sem direção onde estariam suas mães ou irmãs e irmãos, ou o que resta dos seus corpos entre os escombros do que um dia foi algo parecido com uma cidade ou o ensaio de um país – imagens que atormentarão para sempre nossas consciências, pelo menos até o momento em que existam consciências.
O choque entre aquela fotografia limpa e quieta e essas imagens imundas e desnorteadoras é o mais que perfeito retrato do que está acontecendo agora mesmo nesse nosso encantador mundo próspero sem que ninguém consiga fazer parar. Porque, no final das contas, o Império protege seus interesses e protege seus aliados até as últimas consequências, ainda quando seus aliados são criminosos de guerra e praticam genocídio a céu aberto, 24 horas ao dia.
IV
Recentemente, o presidente do governo da Espanha, o social-democrata Pedro Sánchez, visitou o primeiro-ministro israelense e a Palestina e condenou energicamente a guerra de Israel contra a população de Gaza – um dos poucos chefes políticos europeus que ainda o fazem. A ênfase das declarações foi de tal ordem que o ministro de Relações Exteriores de Israel, Eli Cohen, convocou a embaixadora de Israel na Espanha para consulta. Não passou muito desde o regresso de Sánchez quando surgiu a informação de que havia aproveitado a viagem para também firmar contratos de compra de armamento israelense no valor de 287,5 milhões de euros.
V
Até onde sei, a festa do Natal é uma referência ao nascimento de uma determinada criança numa pequena cidade da Palestina, dois mil e tantos anos atrás. Em memória dessa criança, portanto, é que o planeta inteiro deve estar desejando um feliz natal para as crianças da Palestina.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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