Politicamente, o primeiro ano do governo Lula começou no dia 8 de janeiro – quando a intentona bolsonarista pretendeu criar condições para impor uma solução de força e quebrar o pacto democrático no Brasil – e terminou com a aprovação da reforma tributária e as indicações de Gonet para a PGR e de Flávio Dino para o STF. Nada mal para um governo que, desde o início, age dentro de uma margem estreita de manobra e sofre um rigoroso cerco de inimigos fortemente entrincheirados na liderança de alguns dos principais setores econômico-financeiros, cujos interesses são zelosamente defendidos pela maioria no Congresso.

Mas é igualmente verdade que o ano de 2024 começou com a aprovação da Lei Orçamentária Anual de 2024, que destinou escandalosos R$ 53 bilhões para as emendas discricionárias dos parlamentares e subtraiu R$ 61,3 bilhões do total previsto inicialmente para obras de infraestrutura e moradia do “Novo PAC”, uma das principais bandeiras no governo.

Ao negociar cada proposta com uma “faca no pescoço” do governo, a direita mostra a sua determinação de tentar impedir o alargamento da liberdade de ação do governo. Esse embate escancara a dificuldade em desatar o conjunto de nós políticos e institucionais imposto ao país a partir do golpe de 2016.

Neste contexto, é notável o fato do governo ter terminado esse primeiro ano com um padrão de estabilidade social, política e econômica inimaginável no início do ano e não obtida por outros governos do continente. As pulsões mais selvagens da direita e a sua determinação de resolver com paus, pedras e bombas as questões políticas foram contidas pela recomposição de um campo democrático no país, mas estão longe de terem sido completamente sublimadas e permanentemente dão mostras de estarem apenas em estado de latência, esperando a oportunidade adequada para voltar a agredir a democracia.

O rearranjo do campo democrático, no entanto, parece ter sido realizado mais como reação ao estreitamento do núcleo de poder no governo Bolsonaro, que gradativamente foi dando maiores poderes à familícia, aos militares do seu entorno e às frações do poder econômico, cujas fronteiras com o crime são difíceis de traçar. Exemplos são alguns setores do agronegócio que prosperam com o avanço sobre a floresta amazônica e com o envenenamento da agricultura brasileira, o setor de mineração em terras indígenas, os setores empresariais ávidos por eliminar qualquer tipo de proteção aos trabalhadores, etc.

Esse estreitamento do campo golpista não teria ocorrido sem a resistência dos movimentos sociais e a capacidade política dos partidos de esquerda em lutar contra as regressões civilizacionais e mostrar que havia alternativa ao neoliberalismo. Foi essa resistência social e política que criou as condições para uma rearticulação do campo democrático, mesmo que ainda persistam imensas dificuldades para serem superadas, especialmente pela ausência de um acordo programático consistente para o período.

Na gênese da recomposição dos campos políticos, houve um momento de alto valor simbólico, que foi a postura de Lula em não aceitar qualquer barganha que o levasse a sair da prisão de forma tutelada. Ao jamais reconhecer a legitimidade do processo e da condenação que lhe foi imposta, Lula não cansou de afirmar que “eu não troco a minha dignidade pela minha liberdade”. Esse gesto conferiu grandeza moral ímpar à sua liderança política já consolidada e impediu que qualquer arranjo excluísse o campo por ele liderado do protagonismo da vida política nacional, como era o desejo do campo golpista.

Em grande medida, foi durante o próprio processo eleitoral que os campos políticos foram sendo reorganizados, o que torna compreensível que a prioridade neste primeiro ano de governo tenha sido trabalhar na delicada tarefa de ampliar a coesão da base de apoio político e social e, ao mesmo tempo, impedir a possibilidade de rearticulação do campo golpista de 2016. Não é pouco, mas é insuficiente para voltar a atrair setores da nossa tradicional base social ainda polarizados pela ultradireita.

Para que possamos avançar no acúmulo de forças, é preciso construir uma identidade programática que vá além da reação às ações da ultradireita (por mais importante que isso seja) e produzir compromissos visando uma luta determinada contra as desigualdades e mazelas humanas produzidas pelo modelo predador neoliberal, que é o caldo de cultura próprio para todo o tipo de protofascismo e salvacionismo. Ganhamos por pontos o primeiro round desta luta decisiva, mesmo que o adversário tenha usado de todos os golpes baixos. Mas, nos próximos, temos que nocautear da uma vez por todas o golpismo. É esse o nosso desafio.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Leia também “Lula e o neoliberalismo do avesso“, de Antonio Prado.