Quando criança, assistia aos filmes de 007 com entusiasmo. Sonhava em ser o espião aventureiro e glamouroso que enfrentava ameaças globais de smoking, carrões esportivos e hotéis cinco estrelas. Adulto, passou a beber Vésper “batido, não mexido” e se apresentar como “Gomes, João Gomes”. Sua fantasia começou a tornar-se algo real quando entrou para os quadros da ABIn.

No começo, não foi bem o que esperava. Seu cargo de Técnico de Inteligência não lhe abria as portas do Cassino Royale ou de Resorts nas Bahamas. Trabalhava em uma sala comum, com o mobiliário ordinário destinado aos burocratas de baixo escalão. Lia papéis. Organizava documentos. Fazia planilhas. Nada de Walter PPK. Nem criativas engenhocas de espião. Entediava-se no horário comercial. Desanuviava-se do tédio em casa, reassistindo aos seus amados filmes de espiões.

Nas pausas para o café, como em todo lugar que haja mais de um ser humano aporrinhando-se com as futilidades e futricas do trabalho, conversava com os colegas sobre as futilidades e futricas do trabalho. Talvez, pela natureza do que se fazia por lá, evitava-se falar de política. Era assunto privado. Coisa de cochicho entre dois unidos por algum laço de confiança. Foi assim que, após um gole de café frio e uma careta, o coronel Ubiratã o chamou para uma conversa.

Um convite. Participar de um grupo para um trabalho especial. Mas não era para todo mundo saber. Gomes sentiu de imediato um arrepio na espinha. Finalmente uma chance de tornar-se, de verdade, o espião de mentira que modelou seus sonhos até então. Mas havia uma questão preliminar. “Você votou em quem?”. A pergunta o pegou de surpresa. Votou em quem não tinha a menor chance de ganhar. Sempre votou assim. Era sua forma de não se sentir responsável por nada que fosse além de sua própria vida. Mas aprendeu nos filmes que um bom espião sabe mentir bem. “No capitão, é claro!”. “Ótimo! Conversamos melhor lá em casa. Quinta-feira”.

O coronel o recebeu falando ao telefone, indicando com a cabeça o lugar de Gomes entre os participantes da reunião. “Sim, já estão todos aqui. Sim, claro. Sei. Pode deixar. Sim. Ninguém vai saber. Sim. Oquêi. Até”. Era um homem seco com as palavras, mal desligou o celular, foi direto ao assunto: espionar brasileiros. Políticos, ministros, empresários, jornalistas, qualquer um que pudesse ser uma ameaça aos planos políticos do presidente.

Deixou de lado a objetividade do discurso para, em tom empolgado, quase declamativo, justificar a operação que seria claramente ilegal. Seus olhos brilhavam enquanto falava do combate ao inimigo interno. Desfiou uma trama conspiratória em que grandes e pequenos acontecimentos do quotidiano do país eram todos parte de uma grande orquestração comunista para dominar o país. Gomes viu ali um enredo conspiratório digno dos mais fantasiosos vilões de 007. O coronel concluiu com ares de quem proclama profunda sabedoria: “Precisamos proteger o povo brasileiro dele mesmo”. “Às vezes, a melhor democracia é a ditadura”. “Nós seremos a trincheira subterrânea de defesa da liberdade do Brasil!”. Gomes não se conteve. Saltou da poltrona e aplaudiu de pé, sozinho. Os demais apenas assentiram, contidamente, com a cabeça.

Dividiram as tarefas. Caberia a Gomes ler papéis, organizar documentos, fazer planilhas. Todas anônimas. Secretas. Ilegais. Criminosas. Faria mais do mesmo, mas de um jeito diferente. Para um propósito diferente. Sentiu-se excitado. Bond, James Bond tinha permissão para matar. Gomes, João Gomes tinha, agora, permissão para espionar.

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Ilustração: Mihai Cauli  
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