palácio
“Algo inaudito está acontecendo… Seu nascimento provoca sangue e dor. Tempos terríveis estão se aproximando. O que são 30 ou 40 anos de sofrimento e morte? O que importamos você e eu? O que importam essas milhões de vidas? Existem demasiados humanos, Herr Rosemberg.”
Fala do dr. Soltermann em O Ovo da Serpente (Bergman, 1978)
I
Como já é usual, o ano se iniciou pouco mais de um mês atrás com a publicação da lista dos mais ricos do planeta, a mais conhecida das quais é produzida pela revista Forbes – a verdade é que não sei se existem outras. Os cinco mais ricos (ou os 10 mais ou os 100 ou os 500), o quanto mais bilionários ficaram, quem subiu no ranking, quem desceu. Entre os dez primeiros colocados, curiosamente, quase nenhum cuja fortuna seja resultado da produção de um único parafuso, ou uma latinha de cerveja, ou meio quilo de um grão qualquer, exceto o ponteiro, que entre outras mercadorias produz entes tão físicos quanto carros elétricos, mas que espertamente tratou de se meter também no nicho dos demais, comprando o antigo Twitter. Quase todos são parte da mesma patota – Amazon, Oracle, Microsoft, Facebook, Google, i.e., proprietários de máquinas abstratas e intangíveis que fabricam e movem informações. Os dois únicos ETs dessa minúscula elite são um banqueiro e especulador financeiro, portanto nem tão ET assim e o dono da “maior empresa de bens de luxo do mundo”, proprietária de marcas como Louis Vuitton e Dior. É a cara escarrada do novo capitalismo ou, como define o economista grego Yanis Varoufakis, do tecnofeudalismo.
II
Mas a divulgação de uma outra lista fez por instantes vibrar os nervos da alta sociedade estadunidense e da realeza europeia, a dos amigos mais achegados ou partícipes da vasta rede de exploração sexual de menores de idade montada pelo também milionário Jeffrey Epstein. A outra face de uma mesma moeda. Embora pudessem comprar o uso exclusivo da pedofilia, do tráfico e da exploração sexual de menores como um comércio, um bem ou um privilégio seus, isso os bilionários ainda não o fizeram, não pelo menos por enquanto. Muito difundida entre a hierarquia eclesiástica, a pedofilia existe em todas as classes sociais e em todos os países, desconheço se em todos os tempos. Mas cada um é pedófilo à sua maneira. E a Epstein coube a ideia de criar uma azeitada multinacional (literalmente, importando meninas europeias, tal como se importa trigo ou iguarias, ou como se traficava escravos e se trafica emigrantes miseráveis e drogas) para atender à sua tara e à de seu exclusivo clube de amigos, figuras respeitabilíssimas desse pequeno bando de super-ricos e superpoderosos que controla a vida e a imaginação dos servos. Aparentemente, o pânico que se espalhou entre esses ex-amigos não se justificava, já que quase nenhum deles era juridicamente imputável. Apenas foram citados pelas vítimas ou testemunhas dos crimes. Eram tão somente amigos do sentenciado e naturalmente nada sabiam de suas práticas perversas e criminosas.
III
Saltburn, o filme, conta a história do assalto e conquista de um palácio na aristocrática Inglaterra. Um assalto desde dentro e sem conotação explicitamente militar, ainda que resulte na aniquilação dos seus proprietários e descendentes diretos. Nada de muito novo. A revolução francesa já o tinha feito, tomado o palácio e guilhotinado o rei, a rainha e um montão de nobres – além dos que deram início à revolução, logo em seguida. E este foi o ato fundador do mundo moderno. No filme da diretora Emerald Fennel, no entanto, quem o faz é um dotado universitário de classe média que quase que por acaso ou por mérito e talento próprio (para usar palavras muito ao gosto dos que no mundo contemporâneo estão ascendendo ou pretendem ascender a qualquer preço) penetra no mundo das gentes milionárias, e que são milionários desde os tempos da guilhotina. Numa das definições que li sobre o personagem de Barry Keoghan, Oliver Quick, ele é descrito como “um farsante carcomido por um intenso ressentimento social” que afinal resolve ir à forra dando forma e consequência a esse ressentimento. É bem provável que seja mesmo assim. Mas seria injusto dizer que apenas o rancor alimenta a trajetória de Quick. Sua ambição vai muito além de algo no final das contas tão mesquinho quanto o rancor. Quick deseja, sonha, pensa grande. Ele é o novo, o inesperado, a diferença, o que vem de fora e não pertence, e quer esvaziar definitivamente o palácio daqueles que até ali o ocuparam para se apossar dele para sempre, é possível que por gerações e gerações. Me lembra, com as devidas vênias e as devidas proporções, Os Deuses Malditos. Quick talvez esteja também ele fundando um mundo novo e substituindo uma classe ou casta por outra no comando da sociedade. Mas quem em sã consciência arriscaria afirmar que esse novo traz no ventre alguma esperança ao invés de desencanto e cinismo? Não estão ali claramente delineados, no personagem de Keoghan, as marcas daquela mesma brutalidade e daquela vulgaridade obscena do Martin de Helmut Berger no filme de Visconti?
IV
Muito distante de Saltburn, onde fica o palácio da família Catton, Mark Zuckerberg, o sexto da lista de multimilionários ali de cima, estaria construindo numa das ilhas do Havaí, chamada Kauai, uma segunda ou enésima residência. Um complexo de edificações palacianas, com dezenas de quartos, túneis conectando umas às outras e um imenso aparato de segurança e proteção contra qualquer natureza de ameaça ou risco à vida dos seus familiares e convivas. O que se sabe ou pelo menos se especula, já que a obra é rodeada de segredos e mistérios, é que a área da propriedade “teria 566 mil metros quadrados, além de um abrigo subterrâneo de 1.524 metros quadrados”. Especula-se também que o custo da construção estaria beirando os 300 milhões de dólares – para quem é dono, segundo a Forbes, de um patrimônio de 115 bilhões de dólares, uma ninharia.
V
Os muros físicos de seus bunkers e ilhas privadas, os aparatos tecnológicos e simbólicos que os mantêm imunes aos perigos que ameaçam o que costumamos chamar de cidadãos, não são muito distintos em sua finalidade que o da fronteira do México com os Estados Unidos ou o Muro Israelense na Cisjordânia (Israeli West Bank barrier). De modo que não poupam recursos para se protegerem contra a fúria de eventuais invasões bárbaras – e, desgraçadamente para eles, não possuem exércitos privados capazes de exterminar os bárbaros quando esses esbravejam ao lado. Mas, como mínimo, podem mantê-los isolados do ruído e do mal cheiro daquelas gentes.
VI
A residência dos Zuckerberg em Kauai é uma espécie de Utopia privada, exclusiva e, ao mesmo tempo, preventiva, para o caso de a situação do planeta ficar ainda mais feia do que já está como resultado do modelo predatório de exploração do trabalho e da natureza que permitiu o acúmulo de riquezas tão absurdas quanto a do jovem proprietário do Facebook. Mas é, ao mesmo tempo, o retrato do narcisismo desmesurado desses super-ricos. Não é suficiente contemplar o próprio sucesso e gozar com ele, isso é coisa dos que estão imediatamente abaixo na cadeia alimentar. É necessário colocar-se à parte comprando o inatingível. E quem sabe o inatingível não esteja precisamente na perenidade (como a desejada pelos faraós) ou, pelo menos, na sensação da perenidade. Apartar-se, portanto, e o máximo possível do risco do desaparecimento de si próprio e dos seus – da sua imagem refletida nas plácidas águas do lago.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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