O coração do amor é o canto, a poesia, o espanto. Diferentes caminhos levam a esse coração, como a música, o brinquedo, o erotismo, o humor. O pintor judeu russo Marc Chagall dedicou sua vida aos seus amores, e escreveu que só uma cor dá sentido à vida e à arte: é a cor do amor. O amor para ele tem amplas dimensões: a Bíblia, Deus, a sua cidadezinha de Vitebsk na Bielorússia, as artes e as mulheres. Chagall teve uma vida sofrida no mundo russo, e sua história faz recordar o sofrimento com o humor dos contos de Tchekov. A imaginação de um dos maiores pintores do século XX pôs toda essa vida nos seus quadros.
A cor do amor é uma cor pulsante como a história a seguir. Os namorados, que iriam se casar, viviam distantes, se enviavam longas cartas de dez ou mais páginas, fitas gravadas com músicas e poesias de paixão. Um dia, o jovem recebeu uma fita em que a namorada gravou seu banho de banheira. Depois, ela falou imersa na banheira com uma voz suave e um som abafado. Ele podia escutar o som da amada entrando na água, junto à sua alegre voz que marcou na sua alma para sempre.
Essa história revela, talvez, a cor essencial do amor, a cor que dá brilho à vida, que é a imaginação. Esse entusiasmo se pode ler na vida de Chagall, quando aos 21 anos se encontrou com Thea, sua primeira namorada, e escreveu: “Fiquei mais audacioso. Beijei-a dos dois lados. Não me contive mais”. Fez muitos quadros sobre as mulheres com diferentes cores, expressões, às vezes voando. Nas suas cartas revela como na ausência de sua esposa Bella sofria tanto que não podia pintar.
Aliás, depender totalmente do outro, descansar no outro, é o eixo dos conflitos amorosos. Uma vida, quando se funda no outro, gera problemas constantes; o desafio é construir um sentido de si ao lado do outro. Lado a lado se desenvolvem laços amorosos, seja com a arte, ou as amizades. Creio que imaginar todos com seu par ideal já não é tão essencial, porque há variadas formas de amar, de viver com dor e alegria.
Ademais, o amor não é perfeito, a não ser na flor – o amor-perfeito –, flor com cores vibrantes. Entretanto, nunca imaginei a expressão “defeito de cor”, e foi um impacto ao saber do livro da escritora Ana Maria Gonçalves. Esse estranho título “Um defeito de cor” se deveu a que os negros desejosos de ingressar no serviço militar ou no clero deviam pedir dispensa do defeito de cor. Um pedido de desculpas pela sua cor não ser a branca. Nosso bravo país não considerava a cor preta uma cor do amor, daí pedir desculpas pelo defeito da cor. Muitos pensam que isso é história passada, mas não é, pois ser negra ou negro no Brasil é viver ameaçado pelos armados, pelo preconceito, por um racismo persistente. Em Porto Alegre, um negro levou uma facada de um branco e ele é que foi preso pela Brigada por desacato!
Junto à leveza da cor do amor existe a pesada revelação do defeito da cor, expressão do ódio. Amor e ódio, ódio e amor são palavras que estão associadas. O psicanalista Jacques Lacan criou a palavra haineamour, ódioamor, pois revela a verdade da condição humana. Chagall não foi marcado pelo defeito de cor, mas sim por ser judeu, pois desde pequeno sofreu discriminação. Primeiro na Rússia, depois na União Soviética e, finalmente, na Alemanha e França.
Sempre sonhei que negros e judeus deveriam se apoiar na luta contra o racismo. Nos Estados Unidos há vários exemplos dessa solidariedade na luta antirracista. No Brasil começam a se conhecer essas pontes amorosas, como na análise feita pela psicanalista judia alemã Adelaide Koch à Virgínia Bicudo, que era negra. Ela conseguiu ser a primeira psicanalista brasileira, e a história dessa amizade está no filme Virgínia e Adelaide. A obra foi dirigida por Jorge Furtado e Yasmin Thayná, com estreia prevista para esse ano. Artistas como esses dois cineastas e a escritora Ana Maria Gonçalves iluminam o passado desprezado. O Brasil tem muitas histórias em que se precisa tirar a pedra de cima, como a de Virgínia enquanto socióloga, psicanalista e pesquisadora. Os artistas são como vagalumes na escuridão, iluminam o passado recuperando histórias que ampliam os horizontes.
E, recuperei agora, ao ler Chagall, de Jackie Wullschlager, um passado distante dos judeus imigrantes. Esse gênio que fez pinturas, murais, mosaicos, vitrais e cenografias durante 80 anos, escreveu numa carta a um amigo: “Suplico a você que não seja pessimista. A vida sempre é linda, mesmo quando triste”. (Publicado na ZH, em 2402/2024)
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Ilustração: Mihai Cauli
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