O Engenho
A única imagem que Enrico tem de seu bisavô é a antiga foto pendurada na parede da sala de jantar na casa de sua mãe e as histórias de sua epopeia de fuga da pobreza na Itália e de como prosperou no comércio.
Começou trabalhando numa fazenda de cana de açúcar que pouco tempo antes de sua chegada, era tocada por escravos e chicotes. Ele e os que com ele vieram, frequentemente, precisavam lembrar ao patrão e ao capataz que não eram escravos.
Enrico casou-se com Benedita. Filha do estupro de uma escrava pelo patrão. Nasceu mais branca do que preta, dizia sua avó Ethelvina, a única filha do casal que sobreviveu à infância. Na antiga foto da parede da sala de jantar, ela parece mais branca do que o marido italiano.
Ethelvina educou seus filhos lembrando das histórias da família o tempo todo. Falava de vidas marcadas por preconceitos, violências, muito trabalho duro e uma força de vontade capaz de superar qualquer injustiça. Queria que os filhos tivessem consciência e orgulho do sangue que lhes corria pelas veias. Esforçava-se para moldar caráteres que tivessem orgulho de si mesmos sem a soberba dos que, por tantas e tantas vezes na sua vida, tentaram, sem sucesso, diminuí-la. Tratá-la como inferior, como coisa, como bicho, como indigna só pela sua origem.
Do bisavô a seu pai, o patrimônio da família virou riqueza, que Enrico herdou. Lembra com carinho da avó e de suas histórias, mas a história da sua vida é distante demais da história de sua avó para que ele pudesse compreender o que ela lhe dizia.
Sua mãe, Giorgia, era filha de italianos que só saíram da Itália uma vez, muito a contragosto, para comparecer ao casamento de sua filha com um brasileiro. Para não perder o contato com os avós, passava as férias na Itália.
Luigi tem passaporte italiano. Vive como se tivesse sido criado na Itália. Conta para os outros a história de sua família que sua avó lhe contava, mas a conta da sua maneira. Fala apenas de seu bisavô italiano. Deixou de lado todo traço negro de sua história, toda violência que seus antepassados sofreram e toda humildade que sua avó tentou lhe ensinar. Restou-lhe a soberba de quem se diz filho de uma história de empreendedorismo corajoso e de uma fortuna construída com muito trabalho e competência, dando a entender que o trabalho e a competência fora dele.
Contava, já meio embriagado, a sua história para os amigos quando a portaria avisou que o entregador chegou com as pizzas. Nem respondeu. Apenas desligou o interfone e retomou a conversa. Alguém precisou lembrá-lo “a pizza não chegou? Cadê?”. Ao interfone, ouviu do porteiro que precisaria descer para pegá-las na portaria. O entregador estava aguardando. “Mandei subir!”, ordenou com o tom de um senhor de engenho. “Não pode. São as regras”.
Desceu indignado. “Quem essa gente pensa que é?”, perguntava a si mesmo. Questionou aos gritos o porteiro e o entregador, que abaixaram a cabeça escondendo a raiva. Falava deles como “essa gente”, mas os via como menos que gente, como coisa, como bicho, como indignos pela sua origem. Cuspiu na cara do entregador e esbofeteou o porteiro pela afronta de cumprir regras ao invés das suas ordens.
Só ao final da pizza acalmou-se, consolado pelos amigos que diziam que “essa gente” era assim mesmo. “Não sabe o seu lugar”.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
Clique aqui para ler artigos do autor.