“O risco de guerra não é iminente, mas não é impossível.”
Ursula von der Leyen, candidata à reeleição como presidente da Comissão Europeia pelo PPE, em recente declaração sobre a possibilidade de uma guerra total contra a Rússia

I

Frente ao fortalecimento da extrema direita representada por Vox, e de forças similares dentro da sua própria agremiação, “o que fez a direção do PP foi redesenhar a rota do partido e, num gesto quase que automático de sobrevivência, forçar seu discurso ainda mais para o espaço que vinha sendo ocupado” pelos liderados de Santiago Abascal – trecho do artigo Alteração no Centro de Gravidade da Política, escrito dia 1 de março e publicado no TP no dia 4. Menos de uma semana depois, no dia 6, uma das manchetes principais da edição digital do El País dizia: “O Partido Popular Europeu endurece seu discurso para frear a fuga de votos para a extrema direita”. É uma lógica simples, mas aparentemente funciona. Pelo menos na Espanha tem funcionado bastante bem, desde 2019, ano em que os de Abascal começaram a dar as caras e pregaram um tremendo susto no acomodado PP.

II

Nos primeiros 20 anos do Parlamento Europeu, a social-democracia apareceu sempre como a força política majoritária. O Parlamento Europeu é renovado de quatro em quatro anos, de modo que foram quatro legislaturas sob o comando dos socialistas. Justo na virada do milênio, os Populares (PPE) se tornaram isoladamente os donos da maior representação e de lá até aqui não perderam mais a liderança. Em junho próximo haverá uma nova eleição. A julgar pelo passado e pelas pesquisas que já começaram a aparecer, o futuro lhes sorri. E de forma muito assemelhada também para os da extrema direita. O domínio da direita não era e não é só dos Populares, que era e continua sendo a força hegemônica. Como a esquerda não era e não é apenas a social-democracia, ainda que essa seja cada vez mais dominante. Nas duas primeiras legislaturas, havia até o COM (Grupo Comunistas e Afins) que, a partir da terceira (1989-1994), deixou de existir. E sobrevivem os Verdes, cada vez mais identificados com a SD e aqui e ali, agrupamentos inquestionavelmente de esquerda.

III

Para que se possa ter uma ideia aproximada da evolução do quadro político no Parlamento Europeu, um breve apanhado. Após a eleição de junho próximo, inicia-se a décima legislatura. Praticamente desde o início, em 1979, e até a virada do milênio a maioria esteve sempre em mãos da esquerda e centro-esquerda (SD etc). Em 1999 a direita passa ser maioria e desde então compõem maiorias cada vez mais nítidas. A partir de 2014 aparecem os agrupamentos de extrema-direita, que na legislatura seguinte, a atual, mais que dobram sua representação alcançando 73 representantes. Se a esses eurodeputados do ID (Identidade e Democracia) se adicionam os 62 do Grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus (ECR, do qual fazem parte partidos como o VOX da Espanha  Irmãos de Itália e Lei e Justiça da Polônia), os da extrema-direita passam a 135 representantes, encostando nos socialistas, que atualmente são 154.

IV

Se, por um lado, é crescente a hegemonia das forças políticas da direita e, ao mesmo tempo, aumenta a representação da extrema direita, a situação dos governos da UE é ainda mais horripilante. O artigo publicado no dia 4 de março lembrava que “dos 27 países que compõem a UE, apenas seis são atualmente governados por partidos de centro esquerda ou de esquerda”, como é o caso do ilhado caso espanhol. Pois vale a pena voltar um pouquinho ao passado para ver como era e como foi se modificando o panorama. Menos de um quarto de século atrás, na entrada do novo milênio, 10 dos 27 governos da UE estavam em mãos social-democratas, um era governado por comunistas (Croácia) e um por ex-eurocomunistas (PDS da Itália). Os outros 15 eram controlados pela direita e dentre estes um era o de Viktor Orbán, que naquela época apenas ensaiava assumir seu chauvinismo e a cara da extrema direita. Mas a perda da vergonha, tanto por parte dos que guiam quanto por parte dos que são guiados, anda a passos de gigante, e uma década depois, os governos mais ou menos de esquerda (SD e outros) tinham se reduzido a apenas seis, a metade dos de 2000, e os de direita subido para 21, sendo pelo menos dois, claramente de extrema direita (Orbán e Berlusconi). Em 2019, o quadro se manteve praticamente inalterado, com uma minúscula alteração em desfavor da direita, que perdeu um dos seus 21 governos.

V

O centro de gravidade da disputa política no Ocidente não está mais, como esteve nas primeiras décadas que se seguiram ao fim da II Guerra e como lembrava Judt, “entre os comunistas e seus simpatizantes e o consenso liberal-social-democrata”, mas entre a direita e a extrema direita.

VI

Do outro lado do Atlântico, Donald Trump celebra o que todos os jornais titularam como sua “esmagadora vitória” nas primárias Republicanas para a escolha do adversário de Biden. Há analistas que ainda creem na chance do atual presidente opor alguma resistência. Mas são cada vez menos.

VII

É verdade que a agenda da direita e da extrema direita europeia pode ser aqui e ali diferente, porque no final das contas ao Império nada se iguala e de todos se exige subordinação – aliás, dos vassalos europeus não deveria haver queixa, eles têm sido exemplares em obediência e servilismo. É possível que a guerra na Ucrânia já comece a ser dada como caso perdido pelos que têm um mínimo de pudor e ainda se ruborizam com as mentiras demasiado óbvias, mas como discurso o que prevalecerá para a sra. Ursula von der Leyen será o apoio ainda mais firme à Ucrânia – nota biográfica: nascida Ursula Gertrud Albrecht, a candidata dos Populares, para continuar presidindo a Comissão Europeia, assume o von der Leyen no nome ao se casar com Heiko von der Leyen, membro de uma família aristocrática de industriais da seda, mas ela própria é descendente do barão Ludwig Knoop “um fabricante de tecidos de Bremen e um dos empresários mais bem sucedidos do século XIX” na Alemanha. Por trás desse apoio, o que talvez verdadeiramente importe seja o aumento significativo de gastos com a indústria armamentista (do qual tratará o próximo artigo). A atual e futura presidente do órgão executivo da UE foi ministra da Defesa de 2013 a 2019 da Alemanha, no governo de Angela Merkel e é, naturalmente, figurinha carimbada dos círculos de mando da OTAN e seus fornecedores de armas. Num discurso de poucos dias atrás, já como candidata a um novo mandato, ela garantia: “Os cidadãos querem mais defesa na Europa. Querem mais e melhores inversões. Querem que invertamos de forma europeia e de forma mais inteligente. E querem que sigamos sendo transatlânticos sem nenhuma dúvida, mas que sejamos mais europeus”. Promessa de segurança europeia e retórica europeísta para disfarçar a subserviência à força transatlântica e aumento dos gastos militares, por um lado, e ao mesmo tempo, fechamento das fronteiras contra as invasões bárbaras, os famélicos imigrantes (agora mesmo planejam triplicar “os funcionários da agência de fronteiras da UE, Frontex, de 10 mil para 30 mil pessoas”), defesa das identidades nacionais, “blindagem da Europa” e dos “valores cristãos e da família”. Ao mesmo tempo, e é tudo tão óbvio, “menos regulação”, menos “agenda meio-ambiental” etc. Todo o manual do ultraliberalismo econômico acoplado aos valores dos renascidos ultradireitistas.

Israel 2

A imagem dos paraquedas negros levando comida e lançados de aviões militares estadunidenses para os palestinos numa beira mar do sul de Gaza traz algumas constatações. A primeira delas é que frente à ostensiva ação do Império, Netanyahu e seus chefes militares se mantiveram pianinho. O que leva a uma segunda constatação: se o Império em algum momento houvesse desejado, poderia, pelo menos, ter arrefecido o ânimo bélico, quer dizer, a fúria assassina do parceiro, já há algum tempo. Ao invés disso, a estimularam. A terceira constatação é decorrência óbvia e necessária das anteriores. O Império e seus sócios de empreitada minoritários, os europeus, são cúmplices de genocídio e assim poderiam ser juridicamente considerados, suponho, caso a tese venha mesmo a prosperar e ser aceita pela Corte Internacional de Justiça no decorrer dos próximos anos.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Veja também “A força da extrema direita e desafios da esquerda“, de Paulo Nogueira Batista Jr.