Golpe

“Ordem e Progresso”. Lema de nossa bandeira requer nossa constante luta pela “segurança jurídica” e pela “liberdade” no Brasil, uma vez que não há ordem sem segurança jurídica, nem progresso sem liberdade.” Tá bom assim? Perguntou Torres, diligente e receoso de que seu estilo não estivesse à altura da importância daquele momento. Seria sua carta de entrada para a história, devidamente contada pelos historiadores oficiais do novo regime com glórias a si e àquele momento. Golpe
Via-se já de toga a desfilar, supremo de si, Ministro do novo Supremo Tribunal Federal. Talvez devesse sugerir logo a mudança de nome do Tribunal: Novo STF. Seria importante para marcar a ruptura que significaria aquele momento que duraria… “duraria quanto tempo?…” Flagrou-se perguntando a si mesmo. Seria um novo “mandato”, um novo Reich, uma nova era? Cedo ainda para saber. O tempo dirá. Tempo que terá de sobra para ser vitalício do Supremo. O tempo do golpe é incerto, mas seu tempo de ministro e artífice do golpe já o sentia como eterno.
“Sim, e o que mais vai colocar aí?” Quis saber o tenente-coronel, ainda mais ansioso que Torres. Também já se imaginava em melhores condições no futuro. Não o comando do Exército, certamente, ao menos não no começo, porque a hierarquia o colocava em posição ainda muito distante de assumir o comando geral. Naquele sacrilégio democrático era preciso reconhecer, ao menos, a sacralidade dos valores militares do exército do capitão. Mas a presidência de uma estatal, quem sabe?
“Vou ler: Sem dúvida, neste contexto, a ideia de justiça para o Direito do Estado presume que o Poder emana do povo e que a realização da justiça é um imperativo para a sociedade e os agentes públicos. Gostou?”. “Está ficando bom!”, incentivou o tenente coronel com ar juvenil. “Mas… Sei lá, parece faltar alguma coisa. Ainda está muito vago, muito genérico, muito… não sou bom com as palavras”. “Calma, é só a introdução. A gente tem que deixar claro que está jogando nas quatro linhas da Constituição. O capitão insistiu”. “Se é coisa do capitão, então está certo.” Acatou com ar de obediência inquestionada, típico dos vassalos mais bajuladores.

“…Este princípio constitucional (de inspiração humanista e iluminista) surgiu na jurisprudência do Conselho de Estado Francês há mais de 100 anos, como forma de controle para…” “Peraí! Olha, essa parte está meio… sei lá. Parece redação de aluno de escola, daquelas que a professora manda fazer sobre o dia de sei lá o quê”. “É porque você não entende de Direito. Texto jurídico é assim. Tem que mostrar que a coisa toda faz parte de uma coisa maior, entende? Que tem que ser assim porque assim é que é o correto faz tempo. Tem que ser coisa de quem estuda muito e fala de coisas que leu, entendeu?”. “Tá bom…” Assentiu o tenente-coronel. “O estilo militar é mais direto. Logo ao ponto. Todo STF preso. Lula preso. Um monte de gente presa. Ou deportada, sei lá. Vai ter outra Constituição. É para o bem da pátria, família, propriedade e pronto!”. “Eu sei, mas tem que ser nas quatro linhas, lembra?”, insistiu Torres, com gentileza.

“Cara, vai ser muito bom!”. Disse Torres, empolgado, dando um tempo no trabalho. “Vai sim… Agora, vai. Este país é nosso e ninguém mais tasca. Vamos acabar de uma vez com toda essa gente que atrapalha e reescrever a história. Teremos um futuro glorioso, à altura da inteligência do capitão. Com instituições funcionando com a honestidade do capitão. Com um povo temente a Jesus com a fé do capitão”…

Entreolharam-se e explodiram em gargalhadas. Mal podiam se olhar que as gargalhadas voltavam. “Com a honestidade, a fé do capitão!… Há, há, há!… Cara, você não presta!”. “Você também não, ô excelentíssimo ministro”. Riram muito, de perder o fôlego. “vamos nos concentrar”, Torres conseguiu dizer, voltando aos poucos à seriedade que o momento exigia. “Este golpe não vai acontecer sozinho.”

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Ilustração: Mihai Cauli  e Revisão: Celia Bartone
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