A indústria armamentista alcança patamares de crescimento que não devem nada ao período da Guerra Fria.
O cenário talvez com maior probabilidade no curtíssimo prazo para a parte do planeta acima da linha do equador é o seguinte: Donald Trump ungido novamente como comandante-em-chefe da armada do Império, Vladimir Putin já quase entrando no vigésimo quinto ano como czar da vasta e poderosa Rússia e a Europa sob o mando da aliança direita/extrema direita e da aristocrática Ursula von der Leyen. Resta esperar novembro e ver se se confirma o que por ora estão dando as pesquisas para a presidência nos Estados Unidos. Mesmo que não se consume uma nova vitória de Trump, qual a dimensão da diferença entre ele e Biden, pelo menos no que diz respeito à indústria bélica? Quanto à permanência de von der Leyen na presidência da Comissão Europeia a partir de 9 de junho já pode ser dada como consumada.
(Antes de seguir adiante, vale lembrar que, ao contrário da expectativa de dez entre dez analistas e meios de comunicação do capitalismo ocidental nos meses iniciais da guerra na Ucrânia, o capitalismo russo não foi à bancarrota (queda de 11 a 16% só em 2022 segundo previu o FMI, ao contrário disso, teve uma pequena contração de 2,2% e logo um crescimento de 4,8% em 2023), nem se desfez quando as estrelas mais cintilantes do dinheiro ocidental (McDonalds, Coca-Cola, Elon Musk, Jeff Bezos…), num ato de pungente solidariedade com o povo ucraniano, decidiram abandonar o país, Putin não se enfraqueceu nem foi derrubado por cidadãos revoltados com a fuga dessas empresas, ou pelo descontentamento dos seus generais ou os protestos pelos soldados mortos nas frentes de batalha.)
Como pano de fundo desse panorama, o Ocidente está batendo seguidos recordes na produção e comercialização de armas de guerra, liderados, de longe, pela indústria bélica do Império. Mas a Europa, num sonho antigo e permanentemente frustrado, dessa vez não quer ficar para trás. Coincidência ou não, o fato é que desde o início do mandato de Ursula von der Leyen na presidência da Comissão Europeia (2019-2023) as importações de armas pela Europa praticamente duplicaram com relação ao quinquênio anterior (2014-2018), crescendo 94%. Nem toda a responsabilidade naturalmente deve ser creditada à presidenta, até porque nessa estatística estão inclusive países que sequer pertencem à União Europeia. Mas não resta dúvida de que quando se trata de Europa, a UE é o grande astro e, consequentemente, o que atua como principal força gravitacional. E é a alemã quem, no comando da Comissão executiva da União, dita a política e a propaganda do continente.
Os dados foram recentemente divulgados pelo SIPRI (Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo).
O ponteiro longínquo entre os maiores importadores não poderia ser outro que não a Ucrânia, com um crescimento de 6.633%. Com menos da metade desse incremento, a pequena e pacífica Eslovênia (3.300%), a República Checa (3.125%) e daí para baixo, Holanda (751%), Bélgica (271%), Polônia (253%), Suécia (206%), Alemanha (188%), etc, até a Espanha (4,7%) ou os que diminuíram suas importações como a Finlândia (-70%), Itália (-37%), Irlanda (-5,3%) e Grécia (-4,2%).
Desde 2014, a OTAN cobra de seus membros que destinem pelo menos 2% dos seus PIBs aos gastos militares. Em 2023, 11 países gastaram mais que esses 2% (em ordem de mais a menos): a Polônia com quase 3,9% foi quem mais aumentou os gastos militares, seguida de perto pelos Estados Unidos, depois Grécia, Estônia, Lituânia, Finlândia, Letônia, Reino Unido, Hungria, Eslováquia e Dinamarca. Foram três os que alcançaram esse índice dez anos atrás e para 2024 se prevê que serão 18. A Alemanha, pela primeira vez desde o final da Guerra Fria, atingirá esse patamar. Mas que ninguém duvide que frente às mais recentes pressões e à retórica belicista das lideranças da UE, essas expectativas sejam superadas.
A guerra na Ucrânia: causa, mas nunca consequência
O curioso em toda essa retórica belicista do Ocidente é que a guerra entre a OTAN e a Rússia de Putin na Ucrânia é apresentada como a causa inicial que cobra o rearmamento das forças da OTAN, mas não como uma de suas consequências. Uma das manchetes repetidas com pequenas variações pelos jornais europeus (e imagino que também estadunidenses) diz: “A guerra da Ucrânia eleva o gasto militar na Europa aos níveis da Guerra Fria”. É, de novo, tratar o grande público como idiota, o que, aliás, tem se tornado rotina. Basta acompanhar os meses, e anos, anteriores à invasão russa para se dar conta de que, em algum momento, Putin reagiria ao garrote que a OTAN paulatinamente estava montando em torno das artérias do território russo e seus aliados – e não é necessária muita imaginação para saber qual seria a reação de Biden, Trump ou Bush se uma situação longinquamente similar ocorresse com o território, não digo estritamente dos Estados Unidos, mas todo aquele que se situa acima da linha do Equador e entre o Pacífico e o Atlântico.
Essa política obscenamente esquizóide ou cínica (ou as duas coisas) do Império, que exige dos inimigos um comportamento distinto daquele que ele próprio e seus aliados rotineiramente praticam, está se repetindo agora mesmo no ataque de Israel contra Gaza. Mas numa escala de brutalidade e indecência infinitamente mais atroz. Ou será preciso recordar que na Ucrânia, desde o princípio, são duas forças militares profissionais e poderosas que se enfrentam em igualdade de condições? A menos que queiram agora criar a lenda de que o novo herói do Ocidente Volodymyr Zelensky (muito apropriadamente um ex-comediante da TV ucraniana que um dia decidiu investir no papel de político) e sua pobre Ucrânia estão enfrentando sozinhos todo o imenso poderio militar russo. Enquanto em Gaza, bom… em Gaza estão as formidáveis forças armadas do Hamas, ou os terroristas do Hamas conforme as conveniências, e mais de trinta mil mortos civis – a maioria crianças.
E segue a escalada bélica
Tudo serve como argumento para o incremento dos gastos militares e a subida do tom na necessidade de defesa da paz na Europa – a velha cantilena: mais armas para evitar a guerra. Ora é a necessidade de conter o ímpeto expansionista de Putin, mas não o da OTAN; ora a ameaça terrorista islamista, mas não a ganância de Israel e seus colonos para tomar dos palestinos o que ainda lhes resta da Palestina; ora é a proteção das fronteiras do Velho Continente contra a invasão dos bárbaros, i.e., os miseráveis que fogem da África espoliada durante séculos pelos europeus. Com tudo isso, o que aparentemente pode estar se desenhando, numa extensão inesperada do conceito de tecnofeudalismo recentemente exposto pelo grego Yanis Varoufakis, é um planeta organizado em feudos de dimensões continentais hiperarmados e protegidos por muralhas titânicas, construídas em concreto, aço e tecnologias de vigilância de última geração, amparadas numa máquina de propaganda disposta a seguir os mais estritos comandos do complexo industrial-militar.
Hoje, abrir os jornais pela manhã é se dar conta de que os principais meios de comunicação da Europa ou não têm memória ou não têm vergonha. Ou sabem perfeitamente o que estão fazendo e fazem o que o mercado, esse monstro dotado de uma racionalidade cega e demente, lhes ordena fazer. Porque qualquer um que conheça um mínimo da história do continente destruído por duas grandes guerras no século passado, além das outras tantas que mataram milhões de pessoas aqui e ali para além daquelas duas guerras, sabe como elas foram sendo lentamente gestadas e como a imprensa alimentou as chamas daqueles conflitos que, a partir de certo momento, as mesmíssimas manchetes, em tons lamentosos, declararam inevitáveis.
Aqui, por exemplo, a principal manchete do segundo mais importante jornal da Espanha no domingo, 17 de março: “A ameaça de guerra é absoluta e a sociedade não está totalmente ciente”. Um tom acima das recentes declarações da presidenta da Comissão Europeia, menos de um mês atrás. Recordemos: “A ameaça de guerra não é iminente, mas não é impossível.” Um tom acima, concordam? É o que se pode e se deve chamar precisamente de escalada bélica. Com um detalhe, são palavras que foram ditas dessa vez, é verdade, por uma figura menor, e menor em todos os sentidos, mas uma figura menor não no campo da direita, como a sra von der Leyen. Sua autora é a atual ministra da defesa do governo social-democrata da Espanha, a sra Margarida Robles.
Num e noutro caso, agentes públicas que atuam como operadoras do chamado complexo industrial-militar, aquele mesmo cuja crescente influência foi apontada como uma ameaça à democracia por ninguém menos que o ex-presidente estadunidense e general Eisenhower. Das quatro principais manchetes daquele mesmo jornal no domingo, quatro coincidiriam com aquelas mesmas manchetes belicistas que prenunciavam a carnificina que se iniciou euforicamente no verão de 1914, publicadas tanto nos jornais franceses, quanto nos dos Habsburgo. A par e passo, um empurrãozinho na economia. Os economistas sabem o poder das indústrias de alta tecnologia como fator de empuxe para a economia em geral. E poucos setores da economia hoje são tão carregados de tecnologia de ponta quanto a indústria das armas de guerra. Assim que o ânimo é geral, quase euforia. Pelo menos entre os tecnocratas, os donos do grande capital e seus representantes na política. Resta apenas contagiar a audiência. Disso estão tratando agora.
Três manchetes
Se a guerra virá ou não é outra questão. Mas que estão preparando o espírito para ela e se armando, isso não escondem.
No outro grande da Espanha, o El País, três manchetes no centro da página.
A principal: Putin perpetua sua ditadura numa Russia cada vez mais bélica. No momento em que a Europa se empenha numa forte campanha de incremento dos gastos militares, como visto acima, é o inimigo malvado quem se faz cada vez mais bélico.
Os agentes do mal. A segunda manchete: Assim funciona a rede global que sustenta Putin. Como erraram todas as previsões propagandísticas dos primeiros meses após o início da guerra (deblacle da economia russa etc, ver acima), necessitam agora encontrar os responsáveis por manter de pé e pujante o gigante malévolo: os também malvados Iran, China, Coreia do Norte (sic), Bielorussia.
Terceira manchete. “Agente estrangeiro”, a estigmatização do Kremlin em relação aos russos críticos. É claro que se Putin segue inteiro não é porque conta com apoio real na sociedade russa, mas porque impede a emergência de qualquer crítica. Não há dúvidas que Putin manipula os tentáculos do poder como do autocrata que é, não muito diferente daqueles que se alternam na democracia do Império, mas não há dúvidas tampouco que é capaz de mostrar resultados e de algum modo contentar boa parte da sociedade russa. Seja como for, isso pouco importa ao Ocidente, que aliás não se cansa de amparar ditadores e homicidas das piores espécies (ou não basta vislumbrar Netanyahu?). O que, sim, importa à atual UE são os negócios (o das armas, por exemplo) e servir bem ao senhor do outro lado do Atlântico.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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