Estamos em um abrigo para atingidos pela maior catástrofe vivida no nosso estado. Vejo em um canto do salão paroquial uma pedagoga e uma advogada brincando em um tatame cheio de brinquedos e jogos com um grupo de cerca de 20 crianças.
As crianças brincam e jogam com alegria até escutarem o som dos helicópteros de resgate ou das sirenes das ambulâncias. É como se despertassem daquela experiência de acolhimento e solidariedade para a realidade do desamparo. Então João, de 10 anos, pergunta para a advogada/recreacionista “será que resgataram meu pai?”
Subitamente, a realidade catastrófica inunda o ambiente. Dissolve-se o ambiente lúdico que, passado o impacto, é imediatamente reinstalado. Termina o turno de seis horas de dedicação da advogada às crianças do abrigo, e Vinícius, um dos meninos, se despede dela com um comovente abraço somado a um “Te amo”. A advogada sai com lágrimas nos olhos, emocionada pela gratidão do pequeno e caminha absorta em pensamentos.
Talvez essas crianças e seus pais, habitantes de uma vila de sub-habitações, nunca tenham tido essa atenção, este olhar, este acolhimento e acesso a estas roupas e brinquedos, lamentavelmente. Ela pensa, “talvez eu esteja plantando uma semente de esperança de que exista no mundo seres humanos praticando o bem e capazes de se sensibilizar com a dor de outro ser humano”.
Saindo da área delimitada para as crianças, veem-se centenas de colchões cuidadosamente alinhados, limpos, organizados, cada um com o seu kit de higiene, escova e pasta de dentes, ao que se soma um rolo de papel higiênico para cada um. Impressiona a organização do abrigo e a fartura de material higiênico, de água, de brinquedos e até de roupas. Em outro local do salão paroquial foi montada uma verdadeira loja de roupas. Roupas de adulto, masculino e feminino, sapatos, roupas íntimas de todos os tamanhos.
Chega uma senhora obesa com roupas úmidas e, imediatamente, voluntários preocupados se achariam uma roupa apropriada para o seu manequim, se debruçam sobre o estoque de roupas até encontrarem um belo vestido laranja, largo, que se adapta ao corpo da senhora. Veem-se os olhos da senhora brilharem pela perspectiva de vestir-se com alguma dignidade naquela condição de desamparo absoluto.
Há outras – na verdade inúmeras – atitudes de solidariedade comoventes. Milhares de voluntários se dispondo a salvar vidas e acolher desabrigados; centenas de proprietários de barcos e jetskys se dispondo a resgatar e salvar milhares de atingidos isolados nas áreas inundadas; médicos, psicólogos, psicanalistas se dispondo a dar um primeiro atendimento gratuito a necessitados, seja nos abrigos ou remotamente, ou ainda às equipes de resgate; jovens executivos organizando vultosas doações capazes de carregar carretas gigantes com 60 mil litros de água, milhares de roupas infantis, cobertores, etc. Admirável! Comovente!
É claro que nos abrigos e nas ações voluntárias vemos uma parte da humanidade. A face brilhante da humanidade. Mas escuta-se que em outros abrigos há abusos de mulheres, casos de adultério e de assaltos. Saques nas casas abandonadas, facções que roubam barcos de resgate para salvar suas cargas de drogas… Ali se vê a face sombria do ser humano.
Mas tudo isso suscita uma reflexão sobre o humano e sobre a cultura e o sistema socioeconômico em que estamos inseridos. Onde estavam essas roupas, estes colchões, estes itens de higiene, estes brinquedos, antes da tragédia?
Quanto aos bens materiais doados, me parece óbvio que estavam jogados no fundo dos armários dos belos apartamentos da população com mais recursos econômicos. Os doadores, neste momento, dão-se conta do excesso desnecessário que mantém em suas casas.
Mas, indo além da questão material, onde estavam estes olhares cheios de compaixão, toda essa generosidade e disponibilidade afetiva? Onde estava toda essa sensibilidade com a dor dos outros seres humanos?
Creio que ao pensar sobre isso nos damos conta do quanto o sistema e a cultura em que estamos inseridos é perversa. O que primeiro salta aos olhos na perversidade do sistema é deixar desassistidas e excluídas parcelas enormes da população; é não aplicar a riqueza do país em sistemas de proteção contra tragédias climáticas. Também salta aos olhos a irracionalidade de seguir emitindo freneticamente gases poluentes na atmosfera, apesar dos alertas da ciência de que este caminho levará a desastres climáticos crescentes.
Mas quanto aos olhares de compaixão e a disponibilidade afetiva em relação ao outro? Os olhares ao outro ser humano e suas dores, assim como a disponibilidade afetiva, são sequestrados pela exigência de desempenho máximo pela cultura do desempenho (Byung-Chul, 2017). O sujeito fica capturado pela necessidade de produzir e consumir freneticamente o que o encerra num circuito narcisista em que não há lugar para o outro. A impressão é de que a catástrofe rompe a engrenagem produtiva do sistema e liberta o sujeito para conectar-se com a humanidade, sua e do próximo.
Creio que é a isso que estamos assistindo, em meio a tanta destruição: à emergência do humano com toda a sua emocionalidade pela ruptura da esteira alienante da exigência estafante de produzir e consumir até o burnout. (Publicado no Observatório Psicanalítico, 10/05/2024)
Bibliografia:
Han, Byung-Chul (2017) – Topologia da violência. Editora Vozes, RJ, 2019.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Arlette Schickman e Revisão: Celia Bartone
Sobre o tema, leia também “RS-Há duzentos anos…“, de Maria da Glória Lopes Kopp.