Era uma cidade curiosa. Quanto mais o nome do bairro evocava algo bom, pior ele era. Nos Campos Elíseos moravam os famintos. Já no Agreste, os ricos com casas rodeadas por belos jardins e o grande lago da cidade onde alguns se aventuravam em epopeias de fim de semana a bordo de pequenos e charmosos veleiros.
Nos bairros cujo nome começava com “Jardim” – e por lá eram muitos os bairros assim – quase não havia árvores. Neles, o domínio absoluto de asfalto, concreto e do calor inclemente daquela região tornava os moradores destes bairros mal humorados. Era gente carrancuda, as flores dos Jardins daquela estranha cidade.
Às vezes, os ânimos já corroídos de tantos desânimos, se acirravam ao ponto de partirem para xingamentos, empurrões, tapas e até algo mais violento. Um destes muitos jardins era especialmente raivoso. Seus moradores eram soberbos. Achavam-se os mais cultos e de uma polidez que os permitia sentirem-se superiores não apenas com relação aos outros moradores dos outros Jardins, mas de toda a cidade. Até de todas as outras cidades.
Este temperamento de orgulho inflado os fez fecharem-se a tal ponto que, se pudessem, cercariam seu bairro para que ninguém mais pudesse ter a ousadia de ir morar lá. Não queriam nem por pouco tempo aquela gente dos outros lugares que chamavam de “diferenciada”.
Abriam uma sorridente exceção apenas para os ricos moradores do Agreste. Porque eram ricos. Só por isso mesmo. Também os achavam meio gentinha perto de seus costumes tão polidos. Tinham educado ressentimento por aquela gente de costumes e trejeitos tão banais com mais grana que eles.
Mas de todos os tipos de gente diferenciada, as mais detestáveis para os moradores dos Jardins eram os habitantes do bairro Descanso. Os moradores de lá eram até divertidos, meio sem noção e truculentos às vezes, o completo avesso da polidez quase mórbida dos moradores do Jardim. Havia por lá, também, alguns que eram sisudos, calados demais, que geravam infinitas desconfianças da parte dos polidos habitantes do Jardim. Mas nada os irritava mais que o fato dos tão diferentes habitantes de lá serem mais fortes, quase tão ricos – ou não pobres.
Numa noite, as lideranças do Jardim compareceram empoladas a um jantar oferecido pelas lideranças do Agreste. Sentiam-se bem à vontade naquele ambiente de riqueza que suas íntimas entranhas lhes diziam que deveria ser deles. Naquele dia, fizeram um pacto. Os moradores do Agreste não queriam de modo algum que outro bairro pudesse se tornar melhor do que o deles. Já os moradores dos Jardins não queriam mais daquela gente diferenciada e odiosa por perto. Gente que, no fundo, lhes lembrava que toda sua empáfia era apenas isso, empáfia. Soberba vazia de gente vazia. Decidiram unir-se para defenderem seus mundos de riqueza e soberba. O inimigo comum a ser batido, os moradores do Descanso. Descanso deveria ser destruído.
Foi assim que começou o fim não apenas daqueles bairros, mas de toda cidade. Boicotes, provocações e agressões foram crescendo de lado a lado. Todos correram a armar-se, sempre por medo e “culpa” do outro. Ao saberem que um arrumou uma arma poderosa, apressavam-se em arrumar uma ainda mais poderosa. Foram de facas a espadas, de espadas a pistolas, de pistolas a rifles, de rifles a fuzis, de fuzis a granadas…
Hoje, ninguém sabe dizer quem deu o primeiro tiro ou estourou a primeira bomba. Nem se sabe ao certo quem deu o último tiro. Travaram uma guerra que destruiu não apenas seus bairros, mas toda cidade. Restaram apenas as ruínas do que, um dia, foi a vida de gente que se tornou indiferente à vida, gente desumanizada pela riqueza, pelo poder e pelo orgulho.
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Ilustração: Mihai Cauli
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