Ler os livros sobre as estrelas Elis e Lupi é viajar pela música, é se aproximar do coração do mundo.

Diferentes caminhos podem levar ao coração do mundo. Para Nietzsche são as artes, em especial a música, que conduz ao coração do mundo, a um estado de plenitude. As músicas são formadas por sons que existiam antes dos homens na Terra. São os sons da natureza, como o vento e a chuva, ou os sons emitidos pelos animais. A música é essencial na História da Humanidade, a partir da própria fala, que é musical. Aqui já foi escrita a história da literatura, a história política, das guerras, mas só agora está sendo escrita a história da música de Porto Alegre. O autor é músico, pesquisador, jornalista com doutorado em Letras, seu nome é Arthur de Faria. Parei tudo o que estava estudando para ler dois dos volumes da série que ele vem escrevendo sobre a música da cidade. As biografias musicais de Lupicínio Rodrigues e de Elis Regina integram essa história – ambos são artistas de destaque nacional, como se sabe.

Na leitura percebi, com certa vergonha, como sei pouco da história de Porto Alegre e do quanto ela contribuiu com a arte e a cultura do país. No livro sobre Lupicínio, começo por alguns títulos do sumário: Lupi: O menino preto da Ilhota; A Porto Alegre da República Velha; O Brasil unificado de Vargas; Porto Alegre dos anos dourados. Portanto, na leitura se aprende sobre nossa cidade, e assim podemos saber um pouco mais quem a gente é. Convém saber sobre o bairro onde se vive, sobre a cidade, o estado, o país, o mundo. A gente se empobrece ao desconhecer quem somos, por isso senti, ao ler os livros, o quanto é enriquecedor. Arthur de Faria é um músico apaixonado, um empolgado pelas estrelas de maior e menor grandeza. Seu entusiasmo está nesses livros, e imagino os milhares de horas que se dedicou a estudar, entrevistar, escrever e reescrever.

“Elis: uma biografia musical”, ganhei de presente de uma filha e tardei anos para abrir, porque recentemente havia lido uma extensa biografia da cantora. Quando agora li, percebi que uma biografia musical não é o mesmo que uma biografia histórica, porque se centra mais na arte. O autor precisou de três longas décadas para concluir sua odisseia, mais longa que a de Odisseu de Homero. Logo, dedicar uma semana ou pouco mais para ler seu livro é uma garantia de aprendizado. Só pelo último capítulo: “Chegou, de repente o fim da viagem”, quando da morte da ainda jovem que foi revelada pelo famoso Clube do Guri na década de 50, vale a leitura. No final do capítulo há reflexões sobre sua morte repentina que comoveu o país. Henfil, o inesquecível pai do Fradinho, escreveu: “…encontrei a caixa-preta e vou abrir: nós homens a matamos. Você dobrou sua voz e venceu. Dobrou seus negócios e venceu. Dobrou sua consciência política e venceu. Quis ser mulher livre e perdeu. Nós homens exigimos você alta, linda e gostosa. Nós homens a espancamos a murros e pontapés, uma, duas, dez vezes”. O comentário do Henfil segue, e ler é aprender uma vez mais a loucura de nós, machistas, uma loucura assustadora.

Uma provinha dela: a Presidência da IPA – a internacional psicanalítica – só há poucos anos elegeu uma mulher presidente após cem anos.

Lupicínio Rodrigues é até hoje o maior compositor de samba-canção nas palavras de Zuza Homem de Mello, talvez o mais importante estudioso da música brasileira. Dezenas de músicas suas foram gravadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Marisa Monte, Jamelão e muitos mais, muitos mais mesmo. “Se acaso você chegasse”, “Vingança”, “Pobres Moços”, “Felicidade”, “Até a pé nós iremos” (hino do Grêmio, nosso coirmão). Compôs umas seiscentas músicas, foram gravadas umas trezentas, e umas vinte são sucessos até hoje. O capítulo doze do livro é: “Fenomenologia da Cornitude: O guru da sofrência boêmia”. No final do capítulo há uma tentativa de compreender o sofrimento das letras de suas músicas. Arthur faz uma pergunta após essas frases de Lupi: “Se é que Deus fez o homem para rei da vida inteira, mandou criar seu lar, que é para seu reinado, então por que nos deu uma mulher por companheira? Por que não pôs um ente mais sincero ao nosso lado?”. Aí Arthur pergunta: Um homem talvez?

Não sei se é o caso de se pensar só na homossexualidade, pois pensei dos porquês de tanto sofrimento com a mulher, se não há, por exemplo, nessa queixa das mulheres, uma queixa também contra sua mãe, seu pai, que não o ampararam o suficiente. Lupi irradia em suas letras um sentimento de desamparo intenso, e mais ainda a Elis. Se fosse buscar uma linha possível, entre outras, para pensar ambos, partiria da mais primitiva vivência que é o desamparo. Ambos transformaram seus desamparos em arte, ambos nos ajudam a nos sentir mais amparados, aliviados de sofrências. A Psicanálise pergunta: por que as pessoas são viciadas no próprio sofrimento? O psicanalista Adam Phillips, em seu livro recente “Sobre desistir”, sustenta o quanto a pulsão de morte não seria uma pulsão de desistência, pois a vida, às vezes, é uma tortura insuportável. Não se sabe quais eram as raízes das sofrências das nossas duas estrelas musicais. Por outro lado, desejamos que nossos amores, nossos artistas, nossas referências, vivam mais e mais, mas a gente esquece o quanto a vida pode ser torturante. Além do que, ambos vivem nas suas artes e assim se mantém presentes.

Ler os livros sobre Elis e Lupi é viajar pela música, é se aproximar do coração do mundo. São livros da editora Arquipélago que, como outras da cidade, vem caprichando na edição. A leitura pode ser aproveitada também para aliviar as sofrências, ao conviver com duas das estrelas da nossa Porto Alegre. Ah, a terceira estrela do título pode ser nossa cidade da década de 50 ou dos tempos do Fórum Social Mundial. E não seria exagero, também, dar o título de estrela ao polivalente Arthur de Faria.

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Ilustração: Mihai Cauli  e Revisão: Celia Bartone
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