O empreendedorismo das grandes empresas é que abre espaço para as startups unicórnios.
Embora o Brasil tenha provado que pode gerar unicórnios, até agora tem lutado para criar grandes empresas de classe mundial capazes de impulsionar o crescimento e o investimento. A menos que isso mude, é improvável que o Brasil se torne um país com capacidade para entrar na disputa pela liderança das cadeias globais de valor.
A política de inovação industrial-PII que vai direcionar a natureza da inserção internacional do Brasil tem a ver com a secular discussão entre a lógica do “Schumpeter1” e do “Schumpeter2” ou do “Schumpeter Jovem” e do “Schumpeter Maduro”. Qual das duas tem se mostrado mais capaz de explicar a trajetória passada e futura dos países em processo de alterar a capacitação interna das suas empresas para produção e inovação que as aproxime das líderes mundiais e até assumam a liderança?
O conceito de “destruição criativa” está no coração da lógica schumperiana. Descreve como as inovações são introduzidas, transformam, rejuvenescem o capitalismo e, depois de certo tempo de liderança no mercado, amadurecem e se tornam obsoletas e constituem um entrave para o processo de acumulação, para a manutenção do poder de mercado dos oligopólios inovadores e são substituídos por novas inovações.
O “Schumpeter Jovem” destacou o papel do empreendedorismo acima de tudo. O “Schumpeter Maduro” reconheceu a importância das grandes empresas. Entre as duas concepções teóricas decorreram quase 40 anos e a transformação do capitalismo no sistema dos grandes oligopólios em escala mundial da 2ª Revolução Industrial. Essa mudança de enfoque sobre dinamismo econômico e desenvolvimento mostra que não era estática a sua estrutura de pensamento e que também não tinha receio de mudá-la quando necessário para entender o que ocorria de importante na realidade concreta da economia.
A tabela a seguir, elaborada por Keun Lee, mostra a relação entre o “Schumpeter1” (número de unicórnios) e o “Schumpeter 2” (número de grandes empresas).
O que a tabela realça é o extraordinário desempenho da China em criar grandes empresas em 30 anos. Iguala ao número de grandes empresas americanas construídas em 250 anos. A China, na classificação da Fortune Global 500, tem 135 e os Estados Unidos têm 136 grandes empresas. No início dos anos dos anos 1990, a China tinha três grandes. O Brasil tinha duas e atualmente tem nove. O que era uma relação de 1,5 (3/2) passou a ser dez vezes maior (135/9). Se compararmos com a Coreia, também nota-se que eram oito em 1994 e são 18 em 2023. Porém, o Brasil teve um grande crescimento no número de unicórnios de zero em 1994 para 30 em 2023, superando a Coreia que também tinha zero em 1994 e agora tem 29 – praticamente o mesmo número do Brasil.
Se os unicórnios fossem responsáveis pelo dinamismo inovador, estaríamos em uma condição pelo menos igual a da Coreia. Porém, é interessante notar que a Coreia tem a maior razão entre o número de grandes empresas e unicórnios, logo depois vem a Alemanha, seguida pela China. O caso americano, com uma relação muito baixa, realça a especificidade da conexão entre o seu sistema de inovação e o sistema financeiro – com forte presença de capitais – o que possibilita a abertura do capital das startups tecnológicas. A análise dos dados dos EUA e da Alemanha fogem ao escopo desse artigo. O importante é salientar que o Brasil tem uma razão 4,8 vezes menor que a Coreia e quatro vezes menor que a China.
O fato de a China ter sido muito mais bem-sucedida que a Índia – comparação interessante dada a semelhança no tamanho da população, território, localização geográfica e um passado de luta contra a dominação ocidental na geração de grandes empresas de classe mundial – pode ajudar a explicar a enorme diferença no crescimento econômico, no poder geopolítico atual e na dificuldade da Índia sustentar uma trajetória semelhante à chinesa. Ou seja, Índia e Brasil percorreram um caminho similar na incapacidade de construir uma quantidade expressiva de grandes empresas líderes nos mercados mundiais, embora a Índia tenha um desenvolvimento tecnológico superior ao do Brasil em várias áreas de tecnologia sensível, e já tenha se tornado uma das maiores potências espaciais do mundo. Além disso, o Brasil tem uma taxa de investimentos muito baixa, por volta de 16%, quando deveria ser de pelo menos 20%. No segundo governo Lula, chegou a 21%. Na China, é de 35%, mas já foi de 50%.
O “Schumpeter1” pode ficar muito impressionado com a Índia. Isso porque a Índia provou ser capaz de gerar “unicórnios” – empresas privadas com avaliação acima de um bilhão de dólares – ostentando 91 destas empresas no ano passado (ver Tabela 1). Com certeza, a China também supera a Índia aqui, com 368 unicórnios. Mas a Índia permanece entre os quatro primeiros, atrás dos EUA (1.524) e do Reino Unido (153), mas à frente de países como Alemanha (64), Brasil (30) e Coreia do Sul (29). No entanto, sua razão entre grandes empresas e unicórnios é muito baixa (0,10), o que em parte explica seu atraso em relação à China e à Coreia.
Nos anos 1980, a economia chinesa detinha os mesmos um por cento do Brasil de participação no comércio mundial. Em 2010, sua participação saltou para 10,4%, contra 8,4% dos EUA e 8,3% da Alemanha. Durante a primeira década do novo milênio, a taxa de crescimento médio anual da economia chinesa foi de 10,5%, contra 1,7% dos EUA e 0,9% da Alemanha. Ao final da década a China respondia por 42% da produção mundial de televisores em cores, 67% dos produtos de vídeo, 53% dos telefones móveis, 97% dos PCs e 62% das câmeras digitais. (Belluzzo, A União Europeia e sua economia, Carta Capital, 13/09/2024). Esse é o grande diferencial entre os grandes oligopólios e as PMEs, grandes economias de escala e escopo.
As grandes empresas contribuem significativamente para o investimento e crescimento econômico. Um número maior de pequenas e médias empresas (PMEs) está correlacionado apenas a um crescimento mais rápido, indicando que pode ser o crescimento que alimenta a proliferação de PMEs, e não o contrário.
Uma razão para isso – como diria “Schumpeter 2” – é que as grandes empresas tendem a executar atividades de alto nível e alto valor agregado, como pesquisa, desenvolvimento e marketing na matriz, enquanto realizam atividades de baixo valor agregado no exterior. Embora esta última atividade possa impulsionar o crescimento e facilitar a transferência de conhecimento, os países retardatários devem traduzir isso em grandes empresas inovadoras e de propriedade local se quiserem entrar em segmentos de alto nível da economia global.
Isso provavelmente acontece por meio de alguns canais. Um é a transmissão de competências e know how relevantes através do emprego. A Naver é um exemplo, onde seus fundadores – essencialmente o “Google coreano” – costumavam trabalhar para a Samsung. Outro exemplo é o investimento direto da gigante chinesa de tecnologia Tencent em centenas de startups, como uma investidora de capital.
O relatório “EU Industrial R&D Investment Scoreboard de 2023” avalia e analisa as 2.500 maiores empresas do mundo e as 1.000 principais empresas sediadas na UE com os maiores investimentos em P&D em 2022. As 2.500 maiores empresas, representando 42 países, juntamente com mais de um milhão de subsidiárias globalmente, cada uma dedicou mais de 53 milhões de euros à P&D, em 2022. Particularmente, as 50 maiores empresas foram responsáveis por 40% do investimento total em P&D das 2.500 maiores (EUR 1.249,4 bilhões), ressaltando uma concentração consistente de recursos ao longo dos anos. Esse relatório mostra a liderança dos EUA no número de grandes empresas com 827 (42,1%), seguido da China e do Japão, com 679 (17,8%) e 222 (9,3%), respectivamente. A União Europeia tem 367 empresas (17,5%), e nela a Alemanha participa com 113 empresas (8,3%) do total. O Brasil tem sete. Não dá para calcular o percentual.
A concentração do investimento em P&D causa a dinâmica do processo de inovação e abre espaço para a proliferação das startups de tecnologia nos EUA, na China e na Coreia.
Os dados da National Science Foundation-NSF nos relatórios confirmam a extrema concentração dos gastos de P&D nas grandes empresas americanas (mais de 25.000 funcionários) como mostra a tabela a seguir.
As grandes empresas gastam, em média, aproximadamente 38% do investimento total. Como o número delas é muito inferior ao das PMEs, a concentração do investimento em P&D indica as trajetórias a serem seguidas pela inovação nos diversos setores em que elas atuam. A estratégia delas de alcançar seus objetivos estabelece as melhores práticas dentro do sistema de inovação. E no limite, como aconteceu antes e volta a acontecer agora, compram aquelas startups que mais lhes interessam, dada a sua estratégia de inovação, de manutenção de poder de mercado e de valorização dos seus ativos urbi et orbi.
O “Schumpeter 2” argumentaria que os países que não têm grandes empresas nacionais para impulsionar o crescimento e o investimento provavelmente perderão suas startups inovadoras para aquisições por gigantes estrangeiras.
Para evitar esse tipo de “fuga de cérebros”, esforços devem ser feitos para ajudar as startups a crescer rapidamente para que possam se tornar as principais empresas de amanhã. Criar um clima institucional ou de investimento sólido para desenvolver startups pode levar décadas. Leva menos tempo concentrar recursos e competências entre algumas empresas para que elas possam se tornar empresas líderes e emblemáticas. A Coreia do Sul e Taiwan se tornaram economias de alta renda com o crescimento de algumas grandes empresas, como a Samsung e a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), e não com milhares de PMEs.
As startups de tecnologia estão crescendo em todos os lugares. O boom das startups é resultado de políticas baseadas em mitos sobre empreendedorismo. O fascínio pelas startups decorre da percepção de que os países, exceto os EUA, estão perdendo o tipo de cultura de “empreendedorismo” que alimenta o Vale do Silício. Essa ideia nutre uma paixão por PMEs e se baseia na ideia de que o crescimento econômico é criado por pequenas empresas “empreendedoras”. Esse pensamento informou as políticas recentes destinadas a aumentar os empréstimos às PMEs. Infelizmente, há pouca evidência empírica para apoiar tais políticas (Mazzucatto, “Estado Empreendedor”).
O mais recente herói do Vale do Silício, Elon Musk, lançou a Tesla, uma fabricante de carros elétricos de sucesso, com um empréstimo governamental garantido de 500 milhões de dólares. Mas as comunidades de startups no Vale do Silício são muito lentas para reconhecer esse apoio e, em vez disso, fazem lobby para obter incentivos fiscais mais generosos aos investidores. Muito parecido com o lobby das organizações representativas da indústria no Brasil.
O problema é que os empreendedores que se beneficiam do financiamento do Estado são muitas vezes os primeiros a criticá-lo como um impedimento à sua criatividade. Seus negócios foram impulsionados pelo enorme financiamento público para TI e biotecnologia, que atraiu mais de 80% do total de investimentos de capital de risco nos últimos anos. Os investimentos do governo criaram os frutos mais fáceis que os “venture capitalistas” colheram. As reduções de impostos certamente os tornam mais ricos no curto prazo, mas não os ajudarão a fazer bons investimentos no longo prazo.
Não há empreendedor independente na sociedade. Ele depende do sistema de inovação no qual está inserido. Não podemos permitir que a PII seja dominada pelo individualismo empreendedor fundamentalista que é contra a sociedade e a civilização.
O empreendedorismo das grandes empresas, “Schumpeter Maduro”, é que abre espaço para os unicórnios, bicórnios ou startups “córnios” de qualquer tipo. Tamanho é documento.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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