No México, o presidente Lopez Obrador parece se encaminhar para projeto político hegemônico, que não tolera controles nem limites.

A reforma judicial no México

Na data de 11 de setembro, já amplamente carregada de simbologias, o México acaba de aprovar uma reforma judicial de grande alcance que terá importantes consequências para o país e para a região. Ironicamente, uma reforma que pretende reduzir a corrupção foi aprovada com o voto de um senador da oposição que, oportunamente, votou com o partido governante em troca de contrapartidas que não foram divulgadas.

Ninguém no México duvida da necessidade de uma reforma judicial, num país em que mais de 90% dos delitos permanecem impunes e onde, de acordo com pesquisas oficiais[1], apenas 14,8% dos cidadãos tinham muita confiança nos juízes em 2023, enquanto 64,6% acreditavam que os juízes eram corruptos.

A percepção de corrupção, contudo, não é exclusiva sobre o poder judicial, pois cifras semelhantes são registradas em relação às polícias e ao Ministério Público, que não são objeto da reforma. Por outro lado, os juízes mexicanos, como outros funcionários do Estado, gozam de diversos privilégios e mordomias. Como em outros países da América Latina, a justiça mexicana é vista como inacessível para a maioria, enviesada, ineficiente e corrupta. Uma anedota que exemplifica o descrédito do poder judicial é que, quando foi divulgado que a ministra da Corte Suprema Yasmín Esquivel tinha plagiado suas teses de licenciatura e doutorado na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), a juíza obteve medidas cautelares que proibiram à universidade de publicar os laudos que comprovavam o plágio.

Assim, a ideia da reforma judicial tem amplo apoio na população e em amplos setores sociais. Por outro lado, o presidente Lopez Obrador elegeu a Corte Suprema como um inimigo político central, depois que declarou inconstitucionais alguns dos seus projetos, entre eles a militarização dos órgãos de segurança pública. Obrador, num cenário em que a oposição política estava fragmentada e deslegitimada, atribuiu à Corte a defesa das elites em oposição ao povo, representado por ele. Por isso, designou a reforma judicial como meta fundamental do seu futuro legado, reforma que se tornou possível graças à vitória contundente do seu partido nas eleições desse ano que, ajudada por manobras de última hora, como a “persuasão” do senador opositor, permitiu uma maioria parlamentária suficiente para modificar a Constituição.

A proposta do presidente percorreu de forma célere e o processo parlamentar açodado, sem um debate amplo, para que fosse aprovada antes do fim do seu mandato, ainda em setembro de 2024. A nova lei modifica profundamente a organização do poder judiciário com a intenção alegada de torná-lo mais transparente, mais acessível e menos corrupto. Incorpora numerosos dispositivos e cria novos órgãos. Adota a paridade de gênero no poder judicial, cria tribunais colegiados de apelação, amplia as matérias da Defensoria Pública, diminui vantagens e privilégios para os juízes, limita as competências da Corte Suprema e cria um Tribunal de Disciplina dentro do poder judiciário com faculdades sancionadoras. Esse Tribunal emite resoluções definitivas, que não podem ser recorridas em nenhuma instância.

Algumas dessas propostas são razoáveis, outras são louváveis ou discutíveis. Mas a verdadeira revolução reside no fato de que os juízes atuais deverão cessar seus cargos entre 2025 e 2027, e serão substituídos através de um novo sistema de seleção, que reduz os requisitos para assumir o cargo de juiz: graduados em direito com um bom expediente acadêmico, cinco anos de experiência jurídica, reputação ilibada e cartas de recomendação. Elimina-se assim o concurso público como forma de seleção. Os juízes passarão a ser eleitos em votação popular para um mandato por tempo determinado, depois do qual terão de se reapresentar como candidatos se quiserem continuar no cargo. A ideia é que juízes votados pelo povo representarão e defenderão esse mesmo povo. O governo argumenta ainda que juízes votados pela população não serão corruptos. Se acreditássemos nesse argumento mágico, concluiríamos que nunca houve corrupção alguma no poder executivo do México, considerando que prefeitos, governadores e presidentes sempre foram eleitos pela população.

Um precedente dessa aplicação de votação popular para vagas de juízes é a Bolívia, país onde o Tribunal Supremo autorizou a reeleição indefinida do presidente Evo Morales, proibida pela Constituição, argumentando que limitar o número de mandatos violaria os direitos humanos do presidente, coitado. Outro precedente, claro, são os Estados Unidos, onde a votação é um sistema comum para preencher vagas no judiciário, no Ministério Público e na polícia, mas dentro de um sistema de civil law, muito diferente da common law latino-americana, num cenário em que os problemas certamente não são menores.

Na nova lei mexicana, os candidatos a juízes devem ser examinados por um Comitê de Avaliação, com funções ainda difusas, que tem a potestade de decidir quem será candidato e quem não. Esse Comitê poderá, no caso de um número muito alto de candidaturas, fazer um sorteio para decidir quais seguirão em frente.

Os riscos de um poder judicial eleito por voto popular são evidentes. Em primeiro lugar, os juízes devem aplicar um saber técnico, e devem obediência à lei e não à opinião pública do momento. Um bom juiz tem o dever de rejeitar uma atuação ilegal por mais que ela seja apoiada pela maioria naquele contexto. Caso contrário, o poder judicial poderia convalidar os linchamentos. Se as sociedades desejam alterar as leis, possuem meios para fazê-lo, num processo que exige tempo e respeito a determinados protocolos. Mas a lei não pode mudar ao sabor de pesquisas eleitorais, sob o risco de arbitrariedade, iniqüidade e insegurança jurídica. Colocar os juízes como dependentes do voto popular inverte essa lógica e determina que a fidelidade se dê em relação à opinião pública, com vistas à reeleição, e não à lei.

Em segundo lugar, os regimes democráticos se baseiam na separação de poderes e nos contrapesos entre eles. Para que o poder judiciário seja de fato um poder diferenciado, precisa de independência em relação aos outros poderes e o primeiro requisito da independência é a inamovibilidade, que é exatamente o que a reforma mexicana acaba de eliminar. Um juiz só pode ser verdadeiramente independente se suas decisões se derem por conhecimento jurídico e conforme sua consciência, sem o temor das consequências que uma decisão ou outra pode gerar para sua carreira profissional. A partir de agora, os juízes mexicanos deverão considerar como os votantes avaliarão suas decisões se quiserem prosseguir na carreira.

Em terceiro lugar, o conhecimento que o público em geral tem e terá sobre os múltiplos candidatos a juízes será necessariamente limitado, com a exceção talvez de um ou outro juiz das cortes superiores. Por um lado, isso pode provocar o desinteresse geral pela eleição, tal como aconteceu na Bolívia. Por outro lado, os juízes, para se tornarem conhecidos, dependerão da sua vinculação com partidos políticos ou outros atores políticos de maior visibilidade, o que inevitavelmente resultará numa maior politização da justiça.

Em quarto lugar, os juízes precisarão fazer campanha eleitoral, que deverá ser paga por alguém que cobrará posteriormente os respectivos juros. Não é preciso muita imaginação para antever – em muitos estados mexicanos hoje claramente dominados pelo crime organizado, particularmente no Norte do país – quem pagará por essas campanhas e o tipo de favores que receberá em troca.

Em suma, a reforma muito provavelmente resultará num judiciário menos independente, mais politizado, fraco, imprevisível e vulnerável a influências externas, começando pelas interferências do próprio poder executivo.

Numa perspectiva mais ampla, podemos concluir que a esquerda latino-americana não sabe lidar com o poder judiciário. Por um lado, não se pode negar que os juízes tendem a ser conservadores, em parte porque o mandato profissional os impulsa naturalmente a defender o status quo, isto é, a lei, e em parte porque costumam proceder dos estratos médios e altos da pirâmide social e, portanto, não é incomum que defendam seus privilégios de classe e corporativos na hora de proferir suas decisões jurisdicionais. Entretanto, a esquerda não tem encontrado mecanismos eficientes para democratizar significativamente o acesso à judicatura nem para torná-la mais sensível às demandas das classes mais desfavorecidas.

Por outro lado, a esquerda teme, com razão, que o poder judicial seja usado de forma seletiva para perseguir os inimigos políticos dos grupos conservadores, o que se denomina lawfare, como tem acontecido nas últimas décadas em vários países da América Latina contra políticos de esquerda.

Infelizmente, escolher os juízes por votação não vai resolver nenhum desses dois problemas, mas vai tornar o poder judicial mais dependente do executivo. Com efeito, os manuais dos projetos autoritários do século XXI começam por dominar o legislativo para, a partir daí, controlar o judiciário, expurgando juízes insubmissos para atingir um poder completo e inconteste. El Salvador, Polônia e muitos outros países já percorreram esse caminho.

O MORENA, partido do presidente Obrador, parece se encaminhar na direção de um projeto político hegemônico, que não tolera controles nem limites, imitando a história do Partido Revolucionário Institucional (PRI) que tanto criticou e a quem lhe coube a missão histórica, em tese, de substituir.

Referência:[1] Encuesta Nacional de Victimización y Percepción sobre Seguridad Pública (ENVIPE) realizada por el Instituto Nacional de Estadística y Geografía (INEGI).

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “Venezuela: um regime cívico-militar-policial“, de Raúl Zibechi.