O Realismo Mágico de “Cem anos de Solidão” e “Incidente em Antares” desnuda com maestria e humor as veias abertas da América Latina

O termo realismo mágico, também conhecido como realismo fantástico, surge em 1925. O historiador e crítico de arte Franz Roh o usa para descrever uma corrente na pintura alemã que fundia elementos mágicos e realistas. Na literatura, não há consenso entre os pesquisadores sobre quando surge esta tendência, embora muitos apontem sua origem entre os séculos 18 e 19. “Alice no País das Maravilhas” (1865), por exemplo, do britânico Lewis Carroll, é puro realismo mágico. Assim como o “O retrato de Dorian Gray” (1890), obra-prima do irlandês Oscar Wilde. De todo modo, é a partir do século 20 que o movimento ganha corpo. Livros como “A Metamorfose” (1915) e “O processo” (1925), do tcheco Franz Kafka, e “Ficções” (1944), do argentino Jorge Luis Borges, refletiam um mundo determinado pela falta de sentido, pelo absurdo e o vazio existencial.

Na literatura latino-americana, o realismo fantástico desenvolve-se com maior vigor nos anos 1960 e 1970. Especialmente como uma forma de reação contra os regimes ditatoriais espalhados pelos países da região. Sua narrativa peculiar, com elementos mágicos, enredos mirabolantes e linguagem metafórica, permitia que a violência e a repressão política fossem denunciadas e desmascaradas de forma velada. Além de passarem despercebidas pelos censores, algumas obras dessa época – como “Diário da Guerra do Porco” (1969), do argentino Adolfo Bioy Casares, e “Cadeiras Proibidas” (1976), do brasileiro Ignácio de Loyola Brandão –, narradas de forma alegórica e fantasiosa, evidenciavam ainda mais os absurdos e contradições da realidade vivida no período.

Nesses anos turbulentos, em meio a perseguições, prisões e torturas, “Cem Anos de Solidão” (1967), de Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura de 1982, ganha o mundo. Com uma prosa crítica, poderosa e comovente, o escritor faz do povoado fictício de Macondo o microcosmo de uma Colômbia assolada por conflitos armados, pela repressão política, pela miséria e por um governo omisso e vendido para as grandes potências; sem, contudo, abandonar a veia cômica, a irreverência e o sarcasmo. Foi sucesso imediato. Márquez, que nunca tinha vendido mais de 2 mil exemplares de um livro, vê as duas primeiras edições de “Cem Anos de Solidão”, de 10 mil exemplares cada, esgotarem-se em menos de 30 dias.

Quatro anos depois, em 1971, no auge da ditadura militar brasileira, chega às prateleiras das livrarias “Incidente em Antares” (1970). Da mesma forma que García Márquez, Érico Veríssimo lança mão do realismo mágico para criticar e denunciar, com engenhosidade e coragem, os donos do poder. O autor faz da pequena Antares, cidade fictícia localizada ao norte de São Borja (RS), a representação do Brasil da época, com todas as suas mazelas, violências, falcatruas políticas e tragédias sociais. E se a obra de Márquez se destaca também pelo humor, “Incidente em Antares” provoca gargalhadas incessantes, principalmente na segunda parte do livro. A seguir algumas observações e lembranças destas duas pérolas do realismo mágico.

Cem Anos de Solidão (1967) – Gabriel García Márquez

Um casal de primos já é mau presságio. E ainda havia o temor de que os filhos nascessem com rabo de porco. Não demora para que surjam os boatos: José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, em quase dois anos de casamento, por medo de acontecer o pior, nunca tinham mantido relações sexuais. A fofoca corre solta. Mas Prudencio Aguillar vai mais longe. Depois de perder uma briga de galos para José Arcadio, grita para toda cidade que Úrsula permanece virgem. Num rompante de fúria, o marido mata Prudencio. Que continua atormentando-o como fantasma. O que leva o casal a partir de Riohacha em uma caravana. No meio do caminho, Arcadio tem um sonho em que vê construções com paredes de espelhos e ouve a palavra “Macondo”. Ao despertar, para a caravana, abre uma clareira na mata e decide povoar o lugar.

Assim nasce Macondo. E a saga de sete gerações da família Buendía. Baseado nas memórias de infância de García Márquez, “Cem Anos de Solidão” é um intenso e profundo relato das cicatrizes deixadas por décadas de conflitos armados, desejos irrealizados, amores proibidos, tragédias familiares e um ciclo repetitivo e inacabável de erros, arrependimentos e solidão, tema central da obra. Destino inescapável dos Buendía, esse ciclo de repetição ocorre também nos nomes masculinos da família, todos batizados de José Arcádio ou Aureliano. Enquanto os Arcádios são festeiros, impulsivos e desbravadores, os Aurelianos são pacatos e introspectivos. Já as mulheres sustentam a casa, a família e a cidade. Úrsula é a grande matriarca. É dela a primeira e a última palavra, a força, a inteligência e a iniciativa. Márquez desconstrói a imagem machista da mulher subalterna, tão comum à América Latina do período.

Acontece de tudo em Macondo. O cigano Melquíades morre e renasce em diferentes épocas. Rebeca, a quem os Buendía adotam como filha, traz à cidade a epidemia do esquecimento, causada pela epidemia da insônia. O surto repentino obriga os habitantes a etiquetar os objetospara recordar seus nomes, mas o método acaba falhando porque as pessoas esquecem de ler. Até o dia em que Melquíades regressa da morte com uma bebida que restabelece a memória. O cigano, porém, não foi capaz de parar a chuva, que dura exatos quatro anos, 11 meses e dois dias. Nos tempos de chuvisco, o povo vestia a roupa de domingo para festejar a estiagem, mas logo se dava conta de que as pausas anunciavam o pior: furacões destelhavam casas, derrubavam paredes e destruíam as plantações. Até que numa sexta-feira, sem mais nem menos, o sol volta a brilhar. E não chove mais durante dez anos.

Em determinado trecho, Márquez destaca importância da literatura, tão atacada pela censura no mundo real quando desprezada em Macondo. Dono da única livraria de Macondo, cheia de títulos e vazia de gente, o sábio catalão não entende por que os habitantes do povoado temem tanto os livros. Indignado, empacota todos os exemplares que lotavam as prateleiras do espaço e deixa o povoado. Na viagem, se envolve em uma briga com os inspetores da ferrovia, que queriam colocar suas preciosas obras junto ao restante da carga, e sai maldizendo o futuro dos homens: “O mundo terá acabado de se foder no dia em que os homens viajarem de primeira classe e a literatura no vagão de carga”. É a última palavra que o sábio catalão diz em vida.

Com personagens complexos e narrativa envolvente, “Cem Anos de Solidão”, mais do que uma saga familiar, espelha a essência da América Latina. Márquez retrata com maestria a opressão, as desigualdades sociais, as guerras civis e as ditaduras que marcaram o período. E faz de Macondo a expressão simbólica da região. Sob o manto do realismo fantástico, expõe as consequências devastadoras dos regimes totalitários sobre a vida das pessoas e o estrago da influência norte-americana sobre as estruturas de poder locais. O livro, que começa com a fundação de Macondo e culmina com seu colapso, é sem dúvida a grande metáfora da América Latina daqueles anos de chumbo. Além de ser extremamente divertido.

Incidente em Antares (1970) – Érico Veríssimo

Antares é a representação do Brasil da época. Com tudo o que tem direito. Da violência do regime às falcatruas políticas e mazelas sociais. A pequena cidade fictícia, quase fronteira com Argentina, é dominada por duas famílias que se odeiam visceralmente: os Campolargos e os Vacarianos. O conflito entre a duas partes tem início lá atrás, no verão de 1860. Anacleto Campolargo tem interesse em comprar terras na região, Francisco Vacariano não quer intrusos por ali e deixa isso claro, para o outro não ter dúvidas. Afrontado, Anacleto adquire as terras vizinhas, se fixa na vila e funda o Partido Conservador. Chico Vacariano não deixa barato e cria o Partido Liberal. Foi ódio à primeira vista. Que duraria gerações. Nesta primeira parte de “Incidente em Antares”, conhecemos a cidade e entendemos o porquê de tanto ódio. Na segunda, ocorre o tal incidente. E não paramos mais de rir. 

Tudo começa no dia 11 de dezembro de 1963. Ao meio-dia, é declarada uma greve geral que afeta todos os setores. Indústria, transportes, serviços, comércio, tudo para. A cidade fica às escuras. Até os coveiros e o zelador do cemitério aderem à greve. Fato que motiva o tal incidente. E que acaba por tornar-se um problema de grandes proporções, a ponto de colocar Antares, ainda que por pouco tempo, não só não no radar do Rio Grande do Sul como de todo o país. E não era para menos. Neste mesmo dia, sete pessoas morrem e ficam insepultas por conta da paralização. Entre elas Quitéria Campolargo, a matriarca da cidade, que morre do coração; Barcelona, o sapateiro anarquista, fulminado por um ataque cardíaco; a prostituta Erotildes, vítima da tuberculose; e o comunista Joãozinho Paz, torturado pela polícia.

Até aí nada de novo: sete defuntos insepultos, nada tão grave se comparado aos demais transtornos causados pela greve geral. Exceto pelo fato de levantarem-se do caixão para reivindicar seus direitos à sepultura. E para colocar a boca no trombone. No dia 13 de dezembro de 1963 (escolha de Veríssimo nada casual, já que no dia 13 de dezembro de 1968 havia sido decretado o AI-5), sem temer represálias por estarem mortos, convocam a cidade toda para contar os podres da sociedade antarense. “Sou um defunto legítimo e portanto estou livre da sociedade capitalista e dos seus lacaios”, proclama o sapateiro anarquista, antes de soltar o verbo. A prostituta Erotildes não deixa por menos: entrega todos os fregueses adúlteros. Já o comunista Joãozinho Paz denuncia a tortura praticada pela polícia e o enriquecimento ilícito dos mandachuvas locais. As denúncias provocam o caos.

Veríssimo usa o caos instalado em Antares para descrever o que se passa na vida real: a luta de classes, o atraso do coronelismo, as negociatas políticas, a influência das multinacionais, entre outros infortúnios do período. Tudo de forma hilária. O humor só é interrompido para escancarar a violência do regime. Como na passagem em que Joãozinho Paz é torturado: “Enfiam-lhe um fio de cobre na uretra e outro no ânus e aplicam-lhe choques elétricos. O prisioneiro desmaia de dor. Metem-lhe a cabeça num balde d’água gelada e, uma hora depois, quando ele está de novo em condições de entender o que lhe dizem e de falar, os choques elétricos são repetidos”. Personagens reais também ganham vida na trama. O coronel Tibério Vacariano, por exemplo, despreza João Goulart e Leonel Brizola e teme que o Brasil se transforme num país comunista. O que nos faz refletir sobre uma realidade inquietante: talvez um quinto da população brasileira ainda acredite nesta tolice.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
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