O ministro Fernando Haddad tem sabido trilhar esses caminhos perigosos.

 

O Teto de Gastos e outras heresias econômicas

Parte da esquerda brasileira critica a decisão do governo Lula de criar o Arcabouço Fiscal, implantado por Fernando Haddad, ministro da Fazenda. De um lado, muita crítica da esquerda e, de outro, pesadas críticas da direita, que considera o arcabouço como um sistema de controle de gastos cheio de pontas soltas.

A esquerda se esquece do emparedamento do governo Lula pela maioria de direita do Congresso Nacional, pela mídia corporativa e pelo mercado financeiro. Eis algumas razões que levaram o governo a criar e implantar o arcabouço fiscal:

  • A necessidade de se enterrar o Teto de Gastos e, para tanto, colocar algo no lugar, sem o que seria impossível promover as mudanças legais necessárias;
  • O cerco neoliberal ao governo Lula pautado pelo fundamentalismo fiscal que pode levar o governo a impasses políticos e sociais muito sérios;
  • A grande influência do mercado financeiro e da mídia corporativa na política monetária capitaneada pelo Banco Central do Brasil, obcecado pelo controle da inflação e equilíbrio das contas públicas.

O Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95/2016) foi criado no governo Temer com o objetivo de controlar o crescimento das despesas primárias do governo. Para tanto, estabeleceu um limite para o crescimento dessas despesas com base na inflação do ano anterior (IPCA), visando estabilizar o crescimento da dívida pública e restaurar a confiança no ajuste fiscal. O mecanismo do Teto de Gastos congelou por 20 anos (com revisão prevista após 10 anos) as despesas primárias (saúde, educação, infraestrutura, salários do setor público). A inflação (IPCA) passou a ser o parâmetro inibidor de qualquer crescimento real em tais despesas, sob o firme propósito de adequar o tamanho do Estado ao limite orçamentário.

Um desafio evidente do Teto de Gastos é a limitação do aumento de despesas em áreas essenciais como saúde, educação e segurança, o que gera pressões políticas e sociais por aumento de gastos, principalmente em tempos de crise, colocando à prova a durabilidade do mecanismo.

Evidentemente, a Frente Ampla que assumiu o governo sob a liderança do presidente Lula tinha restrições ao Teto de Gastos, já que ele restringe investimentos em áreas que são fundamentais para o crescimento de longo prazo, como educação e infraestrutura.

Com muita dificuldade e debaixo de intenso fogo cruzado, inclusive de “fogo amigo”, o governo Lula e o ministro Fernando Haddad, preocupados com a demanda por investimentos e gastos essenciais ao crescimento de longo prazo da economia brasileira, conseguiram aprovar o Arcabouço Fiscal (Lei Complementar nº 200, de 28/07/2023), em substituição ao Teto de Gastos, definindo novas regras para o controle das despesas públicas, vinculando o crescimento dos gastos à evolução da receita e introduzindo mecanismos para garantir a responsabilidade fiscal e a “sustentabilidade” da dívida pública.

Até o momento, o novo Arcabouço Fiscal trouxe maior flexibilidade em comparação ao Teto de Gastos, permitindo que as despesas cresçam entre 0,6% e 2,5% acima da receita, com base em uma meta de resultado primário ajustada para o ciclo econômico, o que é considerado uma vantagem sobre a regra rígida do Teto de Gastos que limitava o crescimento das despesas ao índice de inflação, sem considerar a necessidade de investimentos ou políticas anticíclicas​.

O novo Arcabouço também introduziu metas para o superávit primário, com o objetivo de reduzir o déficit já em 2024 e atingir superávit de 0,5% do PIB em 2025. Essa abordagem mais dinâmica busca equilibrar as contas públicas sem paralisar o investimento e o gasto social, algo que foi amplamente criticado no modelo anterior.

Contudo, o cumprimento dessas metas depende do crescimento da arrecadação, que somente será viável com a implementação de ajustes tributários. O sucesso ou não dessas metas será testado em 2024. Mesmo assim, uma coisa é certa: o Novo Regime Fiscal é sem dúvida mais adaptado à realidade fiscal do país do que o Teto de Gastos, que acabou sendo ultrapassado diversas vezes por emendas e alterações legislativas.

Observe-se, no entanto, que todo esse debate gira em torno da obsessão falaciosa da direita neoliberal com a sustentabilidade da dívida pública brasileira. Como se o país, devendo em sua própria moeda, pudesse colapsar e deixar de pagar sua dívida interna, o que é um grande absurdo. Como o Estado brasileiro dispõe de mecanismos para emitir moeda e comprar títulos públicos, o Tesouro Nacional nunca deixará de pagar sua dívida em reais. Não há no mundo qualquer caso em que isto tenha acontecido. Não se trata de finanças de pessoas físicas, mas, sim, de dívida pública interna.

Outra falácia imperante é a da existência de uma relação mágica dívida/PIB que delimitaria um nível saudável de dívida pública. Ultrapassá-lo levaria a uma trajetória de colapso da dívida e da capacidade do Estado em pagá-la.

Acrescente-se a isso a noção equivocada de que a política monetária deve ser levada a cabo eminentemente por técnicos que não sejam influenciados pela política. Não existe coisa mais política do que os Bancos Centrais, cujas avaliações deveriam ser pautadas unicamente por economia política de excelência.

O emparedamento do governo Lula e do ministro Haddad pelas forças reacionárias é real e perigoso. O mercado financeiro, a mídia corporativa e os congressistas retrógrados se especializaram em críticas contundentes que visam rechaçar a política econômica e social desenvolvimentista do governo Lula, não admitindo tergiversações em relação às pautas eminentemente neoliberais: meta irreal de inflação, juros elevados e gasto público contido, compatível com o tal Estado mínimo em que acreditam.

Força ao ministro Haddad que tem sabido trilhar esses caminhos perigosos sem tantos tropeços. Sabedoria ao Banco Central do Brasil para convivência harmônica com tais riscos, sem se render à falácia da neutralidade da moeda.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e Revisão: Celia Bartone
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