Dogmas que subjugam o Estado brasileiro
O regime de metas de inflação

Em junho de 1999, o Brasil adotou o regime de metas de inflação como uma resposta à necessidade de uma âncora de política monetária mais eficaz, uma vez que o câmbio fixo foi substituído pelo câmbio flutuante. Desde então, o Banco Central passou a ajustar a taxa básica de juros (Selic) para atingir uma meta de inflação definida anualmente pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que usa o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) como referência para medir a inflação. ​ Em 2019, a meta de inflação era de 4,25%. Buscando uma redução gradual, em junho de 2023, o CMN definiu a meta de inflação de 3% com um intervalo de tolerância de 1,5 ponto percentual para mais ou para menos e a manteve nesse patamar em 2024. A partir de 2025, o Brasil adotará uma meta de inflação contínua, medida em um horizonte de 24 meses, alinhando-se a práticas de outros países. A meta contínua de 3% substituirá o modelo anual, no afã de garantir uma maior estabilidade e previsibilidade nas políticas monetárias de longo prazo.

Mas, afinal, qual seria o nível de uma meta de inflação realista e aceitável para a economia brasileira? Em que evidências empíricas se baseia o CMN, composto apenas pelo ministro da Fazenda, ministro do Planejamento e presidente do Banco Central, para estabelecer a meta de inflação? Como a meta de 3% não tem sido alcançada nos últimos anos, inclusive em 2024, não seria oportuno o CMN fazer estudos mais aprofundados sobre o nível aceitável de nova meta de inflação para o país? E para tanto, não deveria o CMN criar um Comitê mais abrangente para se debruçar sobre a questão, desvencilhando-se do viés “financista” do Banco Central, que secretaria o Conselho?

Evidentemente, a meta de inflação anual de 3% não deve ser vista como um dogma. O CMN pode, em teoria, estabelecer uma meta de inflação maior se considerar necessário. Elevar a meta de inflação, por exemplo, poderia ser uma estratégia em cenários onde há choques externos significativos, pressão cambial causando inflação. Somente este ano o dólar se valorizou 18,2% em relação ao real, com efeitos inflacionários nas importações. Mudar a meta de inflação exige transparência, cautela e gradatividade para evitar falta de compromisso com a estabilidade.

Será que o cenário que se avizinha não justificaria uma análise mais aprofundada do tema?

O cálculo matreiro da dívida bruta do governo geral (DBGG)

Em junho de 2024, a dívida bruta do governo geral no Brasil alcançou o valor de R$ 8,7 trilhões (77,8% do PIB). No mesmo mês, o volume de operações compromissadas diárias com títulos federais no Brasil alcançou níveis de R$ 2 trilhões. Surge daí a pergunta: por que razão nosso país, diferentemente da maioria dos demais, contabiliza as operações compromissadas como dívida pública?

Em muitos países, as operações dos Bancos Centrais para controle da liquidez não são registradas como dívida pública. Em vez disso, são tratadas como operações de política monetária e, portanto, não impactam diretamente o endividamento público registrado. Essa abordagem evita que a dívida pública reflita oscilações meramente técnicas, destinadas a ajustes de curto prazo na política monetária.

No Brasil, os títulos que o Banco Central vende com a finalidade de regular a liquidez monetária são contabilizados como parte da dívida bruta do governo geral (DBGG). Esse tratamento se deve principalmente ao método de contabilidade pública adotado no país e ao próprio formato das operações compromissadas, que envolvem a venda de títulos do Tesouro Nacional com o compromisso de recompra pelo BC. Como esses títulos são do Tesouro, são registrados no estoque da dívida pública, elevando a DBGG mesmo quando o objetivo é o controle da oferta monetária e não a captação de recursos para o financiamento de despesas.

Essa prática pode ser explicada também pelo histórico de crises fiscais e monetárias do Brasil, que levaram a um controle mais rígido do endividamento público. Em períodos de instabilidade, o país recorreu a mecanismos que aumentaram o endividamento, e, para evitar que operações de controle monetário possam ser usadas para elevar a dívida de forma disfarçada, optou-se por uma abordagem contábil que inclui as operações do BC na dívida pública.

Acontece que essa prática distorce a tão dogmática relação dívida/PIB porque, de fato, sem sombra de dúvida, as operações compromissadas levadas a cabo pelo Banco Central do Brasil para a regulação da liquidez, com compromissos de recompra a curto prazo, não deveriam ser computadas como dívida pública. É simples ver que é significativa a distorção da leitura da relação dívida/PIB que ao invés de 77.8%, na verdade, é de 60%. Certamente, os “Farialimers” sabem disso e não lhes interessa para nada esse debate.

A hegemonia do setor financeiro, os juros reais e a indexação dos títulos públicos

Com a última taxa Selic fixada pelo Copom em 6/11/24, que passou a ser de 11,25%, o Brasil exibe a quarta maior taxa de juros do planeta, atrás da Turquia (50%), Argentina (40%) e Rússia (19%). Considerando os juros reais, que descontam a inflação, o país ocuparia o segundo lugar desse ranking, atrás dos russos (9,05%).

Isso pode ser explicado pelo fato de o Brasil ser um dos poucos países do mundo que indexa a maior parte de sua dívida pública. Tal prática promove a certeza de ganho real para os privilegiados detentores de títulos públicos. O mercado financeiro exerce forte influência sobre os órgãos que operam a dívida pública (Banco Central, por exemplo) e, portanto, expropria, de um lado, renda do Estado e, de outro, a riqueza dos empresários e consumidores, através das operações privadas de crédito. É o fenômeno da financeirização que pôs de joelhos toda a sociedade, beneficiando-se de uma portentosa transferência de renda, da ordem de 30% do PIB.

Diferentemente de outros países, onde o rendimento dos títulos públicos é pré-fixado, no Brasil, eles são pós-fixados (indexados). Com o Copom garantindo juros elevados, a dinâmica que se instaura é a de uma significativa transferência de renda para o setor financeiro, sem risco de perdas, em detrimento da indústria.

E essa dinâmica veio para ficar, já que o setor financeiro impõe ao Tesouro a emissão de papéis indexados e sem risco, com atratividade garantida. Caso contrário, deixa de comprá-los, refugiando-se nas operações compromissadas do Banco Central. Como o Tesouro precisa rolar a dívida, ele fica refém do mercado financeiro e continua emitindo papéis do jeito que o rentismo lhe impõe. E não é nada fácil romper com essas amarras. Em tempos de inflação alta, o mercado força o Tesouro Nacional a emitir papéis indexados ao IPCA e em momentos de crise o pressiona para emitir papeis indexados à Selic. Enquanto isso, os outros países emitem títulos pré-fixados, sem garantia de ganho real para os investidores. Os juros são definidos pelo Copom com base no Boletim Focus, que expressa a opinião do mercado financeiro, sem participação dos demais agentes econômicos.  E o spread bancário, na ponta do crédito, um dos mais altos do mundo (40%, em setembro de 24), fecha o circuito dessa dinâmica perversa. É aí que o mercado termina de subjugar o Estado e a sociedade civil. E toda essa financeirização é em grande parte responsável pela desindustrialização do Brasil.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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