The Unfolding: um livro que leva para o mundo da ficção uma conspiração de patéticos reacionários, capitalismo, armas e impostos baixos.

Além dos enredos de seus romances, de seu senso de oportunidade e de seu fascinante entrelaçamento de diálogos, a literatura de A. M. Homes oferece ao leitor a experiência muito cotidiana de se sentir em perigo. Não o perigo iminente, não o aviso de uma catástrofe ou de um colapso sistêmico, mas o dano à saúde decorrente da necessidade de acompanhar uma sociedade que está perdendo todas as premissas humanizadoras que antes regiam seu funcionamento precário. Diríamos que Homes é uma autora cáustica que satiriza os estilos de vida contemporâneos por puro sadismo literário, se não fosse pelo fato de que seu projeto é mais nobre em espírito do que pura diversão. Não vejo nela uma predisposição para a zombaria ou o escárnio por si só. Acho, ao contrário, que sua predileção por personagens no limite e situações desagradáveis é explicada por seu desejo de destacar os elementos mais monstruosos da realidade para transformá-los em frases gramaticais. E, além disso, apresentar ao leitor uma crítica em seu estado mais claro, tornando o mais cristalina possível a visão das deformidades sociais invisibilizadas pela opacidade da vida cotidiana.

Assim, ela tem preferido material sórdido para suas histórias desde o início de sua carreira literária. Para citar apenas alguns: em The End of Alice, ela ousou confrontar a pedofilia sem ambiguidade, e em The Mistress’s Daughter relatou em primeira pessoa o desastroso reencontro com sua mãe biológica. Em May We Be Forgiven – seu romance anterior -, ela lidou de forma mais geral com a maneira pela qual pessoas com a consciência culpada tentam se redimir em meio a um ecossistema social desequilibrado pelo controle e pelos códigos onipresentes de bom comportamento. Após a pausa de seu terceiro livro de contos, Days of Awe (no qual ousou misturar abuso sexual infantil com a invasão do Iraque), The Unfolding é agora publicado em nosso país. Mais uma vez, é um romance longo, sem muitas cenas, considerando suas 450 páginas, e repleto de diálogos animados e perfeitamente críveis. Os dois temas principais são, mais uma vez, a obsessão da autora pela forma como as famílias bastardas são construídas e sobrevivem, bem como as preocupações políticas. Ambos entrelaçados, vamos deixar claro. No último caso, encontramos um olhar retrospectivo: A. M. Homes percorre os últimos 15 anos da democracia americana para falar sobre conspirações. Ela faz isso de uma forma que deixa desconfortáveis leitores como eu, que se sentem incomodados com o excesso de argumentos conspiratórios forçados para explicar qualquer mal, desde o capitalismo internacional até o mapa do tempo. Homes descreve o impacto da ascensão de Barack Obama ao poder sobre alguns militantes de elite – brancos, ricos, racistas e idosos – do partido republicano. Um homem negro, com um discurso explícito sobre a injustiça, vindo sabe-se lá de onde, não poderia deixar indiferentes aqueles que se consideram os legítimos guardiões da nação americana, de modo que, na noite da derrota eleitoral, um deles põe em ação uma espécie de maquinação secreta para reverter a ordem dos acontecimentos a médio prazo. M. Homes explica com essa ficção o advento do populismo nos EUA? Talvez. Ninguém sabe muito bem o que é populismo, mas uma das conquistas de Trump foi deslegitimar as dimensões essenciais da democracia liberal, como a justiça e as urnas, por uma questão de conveniência. Ao fazer o povo americano acreditar que ele era inútil, Trump conseguiu desmontar o mecanismo da estrutura democrática no imaginário social: por que o presidente da nação quer um sistema de justiça orgânico se ele pune seus excessos pessoais? À fogueira a justiça. Para que serve a Casa Branca durante a transferência de poder? Para ocupá-la (bem, para ser ocupada por caras estranhos com chapéus de bisão). Os conspiradores de A. M. Homes partem de uma posição semelhante: para eles, as instituições existem apenas para moldar sua versão do sistema, uma visão na qual a democracia “significa capitalismo, armas e impostos baixos” – a citação é literal. O sistema não deve garantir a justiça ou alguma equidade social – sei que dizer isso sobre os EUA é se fazer de bobo. O sistema existe para preservar uma espécie de imagem elitista e purista, na qual não é a vontade do povo que governa, mas a vontade dos grandes acionistas, juízes aposentados ou altos funcionários que não têm um mínimo de lealdade à democracia.

Eu disse anteriormente que a visão conspiratória deixa desconfortáveis aqueles de nós que não negam que a conspiração possa existir, mas acreditamos que ela não explica todos os desvios nas sociedades democráticas. Em seu romance, A. M. Homes relata a constituição de uma poderosa célula conspirativa no início da era Obama. Não é que a operação não fosse possível: ela era mais do que plausível em um ambiente degradado pela trapaça eleitoral e pelas agressões internacionais de George Bush. Em um terreno tão fértil, é difícil esperar a proliferação de hordas de fanáticos que aceitariam de bom grado a rotação democrática. É difícil não se lembrar de Kennedy, por outro lado. E assim por diante. A novidade talvez seja o fato de que, de acordo com Homes, esses caras que tramam a reviravolta eleitoral representam o resumo do hedonismo, do infantilismo, do fanatismo, da mania e, é claro, do machismo mais ignorante. Eles se reúnem em suas luxuosas mansões com um programa de entretenimento pré-business – tiro ao alvo, cavalos etc. – que dá uma ideia de que seu projeto para o país mais poderoso e complexo do mundo não é comedido nem adequado. Ele não envolve a redistribuição de capital ou a elaboração de leis justas. Ele não responde às necessidades de seus cidadãos ou à urgência de suas ansiedades, mas a um excesso de orgulho e egoísmo. Os conspiradores são crianças mimadas, muito distantes de uma maturidade intelectual minimamente demonstrável, que acreditam que o poder só é legítimo quando é detido por seu próprio candidato. Transpondo esse argumento para a realidade, podemos nos perguntar se houve tais conspirações durante os mandatos de Obama. Se existem durante o mandato de Joe Biden. E, em caso afirmativo, qual é a margem de manobra que eles têm? O romance deixa uma notável inquietação: sabíamos que uma das primeiras democracias do mundo está em frangalhos, sim, mas daí a vazar que militares aposentados, velhos milionários e juízes corruptíveis, esquemáticos em suas abordagens políticas, estão agachados por trás da atividade parlamentar, é aquele salto qualitativo que tanto agrada aos telespectadores de Cuarto Milenio (o personagem do general e seu sistema de bunkers secretos faz arrepiar os cabelos da nuca).

O outro tema de The Unfolding é a família, onipresente em A. M. Homes e na própria literatura americana. Em May We Be Forgiven, os vários eventos do romance gradualmente permitiram que um protagonista com sérios problemas de vida reconstruísse sua família, que havia sido completamente destruída, sobrepondo os remanescentes de outros estratos familiares. O resultado final foi um núcleo familiar novo, heterogêneo e disforme, em que o que agia como cola da unidade não era a vontade de seus membros de permanecerem juntos, o amor ou o patrimônio econômico, mas a necessidade e a vulnerabilidade. É a ideia, felizmente difundida hoje, entre outros, pela esquerda e pelo feminismo, de que o indivíduo não é nada sem a cooperação dos outros, de que as estruturas básicas da sociedade não são estruturas de força bruta, mas dinâmicas de interpenetração mútua que nos mantêm todos juntos. Que somos pequenos, um a um, vamos lá. Essa curiosa família era a versão de Homes do modelo de “família desfeita”, uma versão terna e nada apocalíptica. De fato, parecia a fórmula definitiva de uma autora obcecada pelo assunto, sua contribuição mais clara. Agora, em The Unfolding, ela encena outra família problemática, só que, como no final de sua biográfica The Mistress’s Daughter, a causa de tanta infelicidade em seu seio emerge em toda a sua podridão: obscurantismo, machismo, submissão da esposa aos desejos do marido bem-sucedido, o que as pessoas vão dizer, etc. A cena em que os membros da conspiração fazem uma pausa em uma de suas sessões e saem para o pátio para praticar tiros nos vestidos da esposa do dono da mansão, que está ausente no momento, é uma das cenas mais simbólicas que já se leu sobre violência de gênero. Porque são tiros covardes de ressentimento desproporcional. Tiros nas costas, gratuitos e vingativos. A cena revela, é claro, que nesse ambiente de poder e tradição do dinheiro não é possível ensaiar qualquer solução. Não há esperança, as reconciliações são impossíveis nos quartos das classes mais altas de mentiras e evasivas, porque o mesmo orgulho autoritário que nega a legitimidade da vitória eleitoral a um candidato negro do partido Democrata conduz os desígnios domésticos a portas fechadas. Como se isso não bastasse, Homes introduz nessa mesma família necrótica que protagoniza o romance uma menina adotada por uma antiga infidelidade do pai (história da própria autora, vá lá). Essa menção à adoção não é estritamente necessária para nos lembrar que, em muitas famílias onde há violência oculta ou situações assimétricas de poder, há crianças que sofrem papéis que não lhes correspondem. Mas, como os grandes autores costumam fazer, Homes repete seus temas até o ponto da obsessão. Sempre da mesma maneira e sempre de uma maneira diferente. (Publicado por Ctxt, Espanha)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Traduzido por: Halley Margon
Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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