O bem-sucedido atentado contra o presidente da United Healthcare coloca contra a parede os vendedores de planos de saúde e faz tremer o establishment americano
I
O UnitedHealth Group é um mastodonte do mundo empresarial – e também um predador. Sua meta, como costumam dizer, é fazer crescer a rentabilidade das suas operações e fornecer aos acionistas a plena satisfação de suas expectativas, e superá-las, muitas vezes sem respeitar as regras do próprio negócio e menos ainda, os competidores. Dizem que por sua capitalização de mercado (539 bilhões de dólares), supera nomes como Mastercard e ExxonMobil – as informações podem divergir ligeiramente, mas é por aí. O UnitedHealth Group é também a holding corporativa que engloba, entre várias subsidiárias, a UnitedHealthcare, a seguradora de saúde cujo presidente foi executado no começo deste mês numa rua de Nova York – a repercussão do caso continua crescendo mundo afora, inclusive na imprensa brasileira, que chegou muito atrasada para cobrir o assunto. A UnitedHealthcare fornece cobertura de saúde para 50 milhões de americanos, nada menos que 15% da população do país. O crime produziu e deve seguir produzindo desdobramentos e consequências de grandes proporções. Não há notícias de um assassinato da mesma natureza nos Estados Unidos em muito tempo, se é que em algum momento dos últimos 100 anos, pelo menos, exista registro de ato similar. Se se examina cada um dos seus aspectos, com o que se depara é alguma coisa cujo significado é absolutamente inédito na história do país. É histórico, e se alguém não se deu conta disso é porque ainda não entendeu do que se trata.
II
A comparação apresentada no artigo anterior, redigido antes da captura do suposto atirador, não era despropositada. A frase escrita no caderno de Luigi Mangione, 26 anos de idade, e acusado de assassinar o executivo da UnitedHealthcare, poderia ter sido extraída de um manual do anarquismo europeu do século XIX. O caderno detalhava os planos para o atentado. “É direcionado, preciso e não põe em risco inocentes”, escreveu Mangione. É inevitável voltar ao O Homem Revoltado de Albert Camus (ver artigo da semana passada). “O atentado contra o grão-duque Sérgio fracassa na primeira tentativa, porque Kaliaiev, com a aprovação de todos os camaradas, recusa-se a matar as crianças que se encontravam na carruagem do grão-duque (…) Savinkov opõe-se a um atentado contra o almirante Dubassov no expresso Petersburgo-Moscou: ‘À menor imprudência, a explosão poderia ter ocorrido no vagão, matando estranhos.’” Decididos a colocar “a própria vida em jogo, e de maneira tão completa”, aqueles homens se recusavam peremptoriamente a pôr em risco a de inocentes.
III
Será mesmo que permitirão ao bem apessoado filho da elite do país e membro destacado da pomposa Ivy League subir na tribuna – e falar? Porque em algum momento num futuro não muito distante ele será levado a julgamento e um julgamento pode se tornar uma tribuna para quem tem o que dizer e está disposto a falar a um público ávido por ouvir. Seu manifesto, publicado no Brasil em primeira mão pelo TP, parece ser o preâmbulo. Mas o enredo não está todo aí. Luigi Mangione está mais para astro de Hollywood que para um desses pretos moradores do sul de Chicago, por exemplo, que passam pelas salas dos tribunais como se por uma linha de montagem, apenas para provar a eficácia do sistema e fazer crescer a sua já considerável população carcerária – a maior do mundo, com uma taxa de encarceramento de 639 presos por 100 mil habitantes – o documentário A 13ª Emenda, Ava DuVernay, 2016, conta um pouco dessa história. Ao bem articulado Mangione bastou um mínimo descuido dos guardas que o rodeavam ao baixá-lo algemado de uma viatura para conduzi-lo à audiência preliminar na Pensilvânia para anunciar sua intenção de contar sua versão da história e apresentar as justificativas do seu crime – para o qual, ao menos por enquanto, encontra milhões de simpatizantes. “É claramente injusto e é um insulto à inteligência do povo americano e suas experiências de vida”, gritou, voltando-se na direção dos jornalistas que registravam sua chegada. Ele talvez esteja superestimando a inteligência dos seus compatriotas e, ao mesmo tempo, subestimando a dos periodistas de plantão, determinados a destrui-lo. Mas a frase dita tão rapidamente quanto a situação exigia, tinha clareza e contundência mais que suficientes para indicar que não está disposto a deixar barato. Ele é branco e membro das famílias patrícias, um herdeiro nato de quem sabe ter direito à palavra. Uma hybris secularmente transmitida parece estar incorporada ao seu porte atlético e apolíneo. Quando um sujeito desse porte resolve abandonar o papel para o qual o destinaram, de ser apenas o próximo da linhagem e, seguindo sua índole, ultrapassar os limites, só que na direção contrária à que desenharam para ele, o drama ganha definitivamente a atenção da audiência. Então, talvez não seja tão fácil silenciar e fazer desaparecer o jovem Assassino do Capuz* como se fosse apenas um preto a mais, vindo das periferias das metrópoles do Império.
*(A jaqueta com capuz usada por Mangione se tornou a peça mais vendida nas principais lojas de roupas masculinas nos últimos dias.)
IV
Deve ser coincidência, mas seria indecoroso não ligar os dois eventos. Seja como for, não sou eu quem os está conectando. Apenas dois dias após a morte do executivo, a CNN noticiou em destaque o recuo de uma seguradora de saúde num assunto que vinha provocando revolta entre os anestesiologistas. O título da notícia publicada pela rede era espantoso, parecia absurdo: “Seguradora interrompe plano para colocar limites de tempo na cobertura de anestesia durante a cirurgia”. Ninguém leu errado, é simples assim: colocar limites de tempo na cobertura de anestesia no decorrer da cirurgia (espaço aberto para humor negro). O nome da seguradora nesse caso é Anthem Blue Cross Blue Shield, e ela, a partir de agora – novo espaço para o humor negro – já deve ter tomado enérgicas providências para tornar invisíveis os nomes do seu presidente e diretores. Uma das primeiras notícias do pós-assassinato falava do imediato aumento dos custos com a segurança dos executivos das seguradoras de saúde e demais empresas de má fama. Outras consequências certamente virão, nem todas necessariamente para aprofundar a agonia dos despossuídos e dos humilhados pelos donos do capital. A história está entupida de exemplos. Cada ataque aos endinheirados resulta em castigos cujas dimensões são quase sempre muito superiores à ofensa cometida – podem ir do aumento crescente no número de chibatadas à extensão da pena à família do infeliz, do encarceramento de acordo com as leis em vigor à reforma do sistema penal ou até ao seu completo atropelo (vide Guantánamo e Abu Ghraib). Raras, mui raras vezes, atentados contra os poderosos conduzem à inibição dos abusos cometidos ou geram seguidores. Mas pode acontecer.
Destruir a imagem do atirador, custe o que custar
Desde o minuto um da prisão de Mangione, está em andamento um minucioso processo de desconstrução da sua imagem. As investidas cerradas chegarão de todos os lados e atenderão aos mais variados apetites. Haverá, claro, aqueles voltados aos gostos refinados, construídos com sutileza e paciência. Assim, um desses petardos se intitulava “A Objetificação do Acusado”. Percebem como vem de alguém habituado à finesse intelectual? Vanessa Friedman, a autora do texto, é diretora e crítica chefe de moda do NYT. O lead em seguida interrogava: “o que acontece quando crimes violentos são ofuscados pelas aparências?”, do criminoso, é claro. A chamada para a matéria no site era mais reveladora: “Luigi Mangione e o perigo de um criminoso bonito” – 11/12/24. (A Folha de São Paulo, que não tem mantido seus leitores atualizados sobre o crime, muito menos se preocupado em contextualizá-lo, teve o mau gosto de republicar o artigo da sra. Friedman dois dias após sua publicação no NYT – e curiosamente, deixa de informar ao que se dedica a sra. Friedman.) Logo haverá também os que jogam o jogo bruto direcionado não à requintada gente da moda, mas aos brutamontes de Wall Street. Um dos mais talentosos porta-vozes da elite financeira americana e colunista de opinião do NYT, Bret Stephens, já se incorporou à tropa. Eis como avança contra o alvo: “Thompson, e não Mangione, é o verdadeiro herói da classe trabalhadora” – o executivo tinha origens numa família da classe trabalhadora e o atirador pertence a uma da elite. Para além da banalidade da ideia, e da hipocrisia que ela escancara (será preciso voltar ao assunto), seus argumentos são um primor de malabarismo retórico e absoluta ausência de escrúpulos. Mas o texto, neste momento, pouco interessa. Importa é que os que estão sendo convocados para a ofensiva são inquestionavelmente do primeiro time. Logo outros pesos pesados entrarão em campo. Porque estão preocupados. Sabem que a mensagem atingiu fundo o coração e o cérebro do americano comum.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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