O arranjo de Esta Terra Amarga é arrebatador, evocando uma atmosfera perfeita para um filme de ficção em que um planeta à deriva ameaça colidir com a Terra. No filme, o planeta seria visível a olho nu, aproximando-se gradualmente no céu. Diferentemente dessa narrativa cinematográfica, a iminente catástrofe da economia brasileira, constantemente anunciada pelos especialistas do mercado financeiro, permanece invisível nos indicadores econômicos.
O arranjo de Esta Terra Amarga, com a voz de Dinah Washington, é devastador para o ânimo de qualquer um. Escolha perfeita para a trilha sonora de um filme que nos coloca frente a uma catástrofe cósmica.
Este filme de ficção leva a aflição da alma ao limite da resistência moral. Um planeta à deriva está em rota de colisão com a Terra. Nada poderia ser mais assustador, pior do que o grande asteroide que extinguiu os dinossauros há milhões de anos. É para destroçar qualquer espírito.
A situação tem alguma semelhança com os vaticínios feitos pelos especialistas do mercado financeiro sobre a economia brasileira. Todos os dias, a imprensa falada, televisada e escrita divulga as previsões da colisão planetária contra nossa economia.
Há, porém, uma diferença fundamental entre a tragédia do filme e a anunciada pelo famigerado Mercado. O planeta podia ser visto se aproximando, bastava olhar para o céu. No caso de nosso país, não se vê o que está por vir.
E não se vê pelo simples motivo de que não há nada no horizonte que faça o céu cair sobre as nossas cabeças. Os analistas do Mercado têm interesses, como têm interesses os meios de comunicação controlados pelos especuladores das finanças. E não são só interesses financeiros, são também políticos.
Fui percorrer os indicadores da economia para checar o que há de tão assustador. A economia, que deveria ter crescido só 1,5% em 2024, segundo profetizavam os analistas, crescerá cerca de 3,5%. Isto significa que estamos crescendo um pouco mais que a média mundial, que está em 3%.
Mas, crescimento do PIB às vezes é um indicador enganoso, pois há a possibilidade de crescimento sem geração de empregos. Não é este o nosso caso. A taxa de desemprego, de 6,1%, está no nível mais baixo desde 2012, quando teve início a PNAD-contínua e que já chegou a 14% durante a pandemia, em 2020. Foram criados nos últimos 12 meses 3,2 milhões de empregos, com crescimento do rendimento real de 4,1%. É um mercado de trabalho gerador de empregos e com ganhos acima da inflação.
Por sua vez, a inflação está sob controle e nos últimos 12 meses, até nov-2024, o IPCA subiu 4,87%.
Estes são números bons, mas não são os únicos. O índice de pobreza caiu: 8,7 milhões saíram da pobreza e o número de pessoas em situação de insegurança alimentar severa está caminhando para nos tirar uma vez mais do Mapa da Fome da ONU.
Os analistas do Mercado parecem olhar este cenário como prenúncio de uma tormenta. Baseados em quais informações? Naquelas da política fiscal.
Mas o que há de tão assustador nos indicadores fiscais? Dizem os analistas que a trajetória dos gastos do governo é insustentável e que isto levaria a dívida pública ao descontrole. Não é o que revelam os estudos do IFI Instituição Fiscal Independente. Para 2024 e 2025, o esperado é que os limites previstos no arcabouço fiscal sejam respeitados e a dívida pública bruta ficaria em 78% no final deste ano e 81,4% em 2025, com crescimento lento até 2034.
Há um cenário otimista, com Dívida Pública se estabilizando até 2034, um pouco acima de 80% e outro pessimista, com a Dívida escalando até 168,3%. O cenário pessimista, que parece ser a aposta de especuladores do Mercado, só se realizaria se houvesse descontrole dos gastos primários e aumento brutal dos juros reais. Não há nada que indique isto. Lula já demonstrou em seus mandatos de 2003 a 2010, que não é um administrador temerário e com ele, a dívida pública caiu como proporção do PIB e os gastos primários se mantiveram sob controle. Portanto, há disposição e capacidade. Lula foi responsável do ponto de vista fiscal, mas ajustou com crescimento do PIB, o que faz toda a diferença.
Considerando isto, há que se registrar que a dívida pública hoje não cresce pressionada pelos gastos primários e sim, pela carga brutal de juros. São os juros reais que contribuem mais para o crescimento da dívida. O gasto com juros está em torno de 7,7% do PIB e o déficit nominal em 8,0%. Ou seja, 95% da pressão sobre a Dívida Bruta do Governo Geral vem dos gastos financeiros. Logo, há que se baixar as taxas de juros reais.
O atual nível dos juros não é justificável com base nos dados da economia. Parece mais resultado do lobby do Mercado e de distorções na condução da política monetária do Banco Central autônomo. Mas não só.
Quem estabelece a meta de inflação é o Conselho Monetário Nacional, órgão colegiado com maioria do governo. A meta de 3% é inconsistente com a história da inflação brasileira, que nunca se estabilizou neste patamar, desde a adoção da política de metas de inflação. E houve ainda uma surpreendente redução da meta na atual administração.
Há os que projetam o final dos tempos se a meta for corrigida para um patamar um pouco superior. Mas é bom que se saiba que no início de 2003, o Banco Central corrigiu a meta por decisão da autoridade monetária e depois ela foi reduzida para níveis críveis. O período de 2003 a 2010 foi de crescimento econômico com inflação em queda e dívida pública sob controle e diminuindo. O mundo não acabou e o céu não caiu sobre as nossas cabeças.
O cerco do capital financeiro ao governo – e é bom que se diga, ele não é monolítico – parece o enredo da Crônica de uma Morte Anunciada, uma obra-prima que trata da responsabilidade coletiva. Todas as sugestões dos lobistas não resolveriam o problema alegado por eles, só o agravaria.
Estabelecer uma austeridade fiscal convencional, baseada em cortes de gastos correntes, nos conduziria a uma corrida para a sarjeta. A contração do crescimento econômico reduz a arrecadação dos governos e ao invés de reduzir o déficit público, faz com que ele aumente. Já vimos este filme antes, aqui e alhures.
O ciclo vicioso de queda da arrecadação, por redução da atividade econômica, aumento do déficit público primário, porque uma sociedade urbana complexa exige gastos sociais que tem pouca flexibilidade à baixa e aumento do gasto financeiro, porque banco comercial quer mais juros quando o devedor fica em apuros. Este é um ciclo vicioso fatal. Para a economia e para a política. E no final do dia, para a democracia.
Estamos vendo hoje o dólar cada vez mais caro no mundo. E no Brasil, ele sobe mais do que nos outros países. Com o bom cenário econômico, com superávit comercial, investimentos estrangeiros que superam o déficit de transações correntes e reservas internacionais subindo (US$372 bi em set/24), que canoa é esta que balança em águas serenas?
São alguns passageiros que balançam a canoa. Há a ação de especuladores neste quadro. Os tradicionais e os novatos. O governo Bolsonaro, entre outras barbaridades, abriu o mercado de câmbio totalmente, através das plataformas financeiras. Isto reduziu a capacidade de intervenção da autoridade monetária no mercado cambial. E há o fato de a autoridade monetária ter ficado inerte durante boa parte da subida do dólar por aqui.
Temos US$1,3 trilhão de estoque de capital estrangeiro no país, que implica em envio de lucros e dividendos ao exterior. Mas até recentemente, esta vulnerabilidade potencial não ameaçava o país. Com o terrorismo do Mercado, estes capitais podem ter retirado mais dólares do que o usual, pressionando ainda mais o câmbio.
O dólar em R$6,18 tende a pressionar a inflação. E pasmem, isto justifica o aumento dos juros pelo Banco Central e, portanto, aumenta ainda mais o déficit nominal e a dívida pública.
Vivemos a profecia auto-cumprida da turma endinheirada, que recebe juros altíssimos, benefícios fiscais bilionários e resiste bravamente a pagar impostos segundo sua capacidade contributiva. Querem que a classe média, os pobres e miseráveis paguem os seus privilégios exorbitantes.
São R$869 bi em juros, mais R$544 bi em benefícios fiscais e outros tantos em sonegação, pura e simples. Cerca de R$2 trilhões todos os anos transferidos para os donos do poder, sem retorno social significativo. É a cornucópia da fortuna, garantida pela força das oligarquias, que teima em manter o país no atraso.
Esta Terra Amarga poderia ser mais doce.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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