Para os corações que não são de pedra, antes de falar em construir uma Frente Ampla, o governo Lula precisa se organizar e a esquerda se recompor para recuperar os eleitores perdidos.
Nos últimos anos, entre os progressistas, muito se tem falado no Brasil da necessidade de uma frente ampla para enfrentar a extrema direita. Vou tratar neste artigo de três aspectos que precisam ser considerados, quando se pensa em frente ampla. O primeiro distingue coalizões de governo de frentes amplas; o segundo supõe a necessidade de qualificar frentes amplas, verificar quando são vantajosas e que condições de emergência possuem; e o terceiro trata das suas possibilidades de existência como capital político de governos progressistas, no caso em questão, para enfrentar a direita.
Comecemos limpando a área. Não é verdade que todos os governos brasileiros criaram grandes coalizões para governar desde o processo de redemocratização, na década de 1980. Assim seria se tivesse havido um legislativo federal que variasse ideologicamente, na sua maioria, ao longo do tempo, o que não aconteceu. Historicamente, a Câmara de Deputados e o Senado têm se constituído como maiorias conservadoras. Em alguns momentos, tendem mais para a centro-direita; em outros, para a direita mais extremada. Com maior ou menor despudor, formam o que se convencionou chamar de Centrão, cuja principal característica é o fisiologismo. Em qualquer análise atenta da política brasileira, é preciso não confundir a denominação “centrão” com uma postura democrática ideologicamente centrista. O Centrão é constituído de políticos de direita que, em troca de favores, legais ou não, apoiam um ou outro governo ao sabor de seus interesses, na maioria das vezes muito pouco republicanos. O apoio de múltiplos partidos que formam, em um certo momento, verdadeira sopa de letrinhas, não quer dizer coalizão. Estas denominações partidárias não se constituem a partir de projetos distintos para o país, mas por projetos que pertencem a grupos, famílias políticas, denominações religiosas etc.
Quando os governos são progressistas, de centro-esquerda ou esquerda, o preço que pagam para governar é muito mais alto. O fisiologismo se apresenta sem qualquer recato, negociando seu apoio por altos valores, simples assim. Projetos do governo serão aprovados se os parlamentares forem muito bem pagos. Em vista disso, torna-se necessário repensar o conceito de coalizão, muito calcado, equivocadamente, em minha perspectiva, no Pacto de Moncloa, que formalizou a redemocratização da Espanha em 1977.
Considerando a segunda questão posta acima, não é possível ignorar que no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul, sempre idealizamos a Frente Ampla uruguaia. Nada mais errôneo do que pensar que uma Frente Ampla semelhante àquela possa se repetir no Brasil. O contexto histórico em que se formou, unindo pequenos partidos e grupos de esquerda há 40 anos como reação aos dois partidos tradicionais do país não aconteceu pela incorporação do centro para o alargamento de apoio em contendas eleitorais, mas pela reunião de partidos e grupos de esquerda para enfrentar a direita. Também é preciso considerar a imensa distância que existe entre fazer política em um país com uma população de menos de três milhões e meio de habitantes e 2 milhões e 700 mil eleitores e no Brasil, com 216 milhões de habitantes e mais de 155 milhões de eleitores. Uma frente ampla, para ser eficaz, precisa ter robustez popular, não pode ser apenas uma reunião de notáveis. A constituição de uma frente ampla em um país com a complexidade de um país gigante, em território e em população, exige ferramentas de outra ordem.
Finalmente, mas não menos importante, é preciso olhar para as dificuldades internas da Frente Ampla uruguaia e a difícil vitória frente à direita na atual quadra da política no mundo, onde a democracia está desidratada de conteúdo, o capitalismo reina sem adversário capaz de lhe fazer frente, tanto no nível econômico, quanto como forma de vida.
Isto posto, pensemos nas condições possíveis de uma frente ampla progressista se concretizar, primeiramente em termos abstratos (ou, se quiserem, teóricos), depois considerando a prática política no Brasil. Teoricamente, para que uma FA se realize, alguns elementos devem estar presentes. Uma FA tem de se posicionar em oposição clara a um estado de coisas. Uma frente progressista existe na medida em que se coloca contra um projeto político conservador, reacionário, com feições fascistas. Nada mais pseudoingênuo do que pensar uma frente ampla capaz de reunir contrários do passado em um objetivo comum.
Isto leva a um segundo elemento importante, uma linha de corte que se concretiza ao definir quem fica dentro e quem fica fora da Frente Ampla, a partir de posicionamentos ideológicos. A linha de corte pode ter uma certa flexibilidade, mas não pode ser flexível ao ponto de incorporar “pessoas de bem”, o inimigo de ontem, em nome da reconstrução nacional. Isto já aconteceu em situações de grande exceção, e a história mostrou que, na maioria das vezes, estas reconciliações nacionais foram falsas, não atingiram os resultados esperados. Os dois elementos acima enumerados envolvem naturalmente um terceiro: uma Frente Ampla deve ter um projeto político de sociedade, um posicionamento mais inclusivo do que meros acordos eleitorais. Ou seja, uma FA progressista precisa saber a que veio, tem de se posicionar sobre as principais lutas da sociedade e se apresentar como um projeto estruturante. Como quarto e último elemento, para ficar apenas naqueles que penso que sejam indispensáveis, a Frente Ampla precisa ter uma liderança no sentido gramsciano do termo. Não me refiro a uma pessoa como líder, a um ícone mitificado, que pode se tornar o caminho mais curto para o fracasso (e a história está prenhe de exemplos), mas a um coletivo, que pode ser ou não um partido, que fale pela FA e que suas manifestações decorram de uma discussão interna democrática, que se constitua no elemento unificador de todas as lutas, que simbolize a unidade na diferença. Um amontado de demandas contra o opressor não se constitui em si um projeto. Um discurso capaz de se opor ao opressor necessita de uma cadeia de articulações entre diferentes demandas que se tornem equivalências e se unifiquem, ainda que sempre sejam provisórias.
Disso decorre o meu terceiro ponto: o Brasil necessita de uma Frente Ampla? Antes de responder a esta questão, é preciso considerar que o país ainda precisa realizar duas tarefas hercúleas. A primeira é organizar o governo Lula para governar com menos atropelos nos próximos dois anos. E aí sim, necessita de acordos, coalizões e aliados de ocasião. Não há outra saída, muitas vezes terá de fazer concessões necessárias para conseguir levar a efeito seus projetos. Atualmente, no Congresso Nacional, a maioria de seus membros age como se estivesse num mercado persa, onde a barganha é o princípio de funcionamento. A segunda é recompor a esquerda enquanto tal para recuperar os eleitores e eleitoras perdidos e ter força para enfrentar as forças reacionárias, neofascistas e antidemocráticas que procurarão se valer de eleições democráticas em 2026 para tomar o poder. Nesta situação, sim, há necessidade de construir uma Frente Ampla desde ontem, na qual o Partido dos Trabalhadores tem um papel decisivo. Não porque detenha o monopólio da verdade, não porque sempre proponha as melhores soluções para a problemática brasileira, não porque seja composto pelos melhores políticos e políticas. Nestes quesitos, o PT divide qualidades com o PSOL, com setores do PSB e do PDT e com muitos movimentos sociais. Entretanto, o PT possui uma estrutura, uma história, um enraizamento no país que não podem ser menosprezados. Gostemos ou não, o PT é o maior partido brasileiro e o único entre os grandes que conseguiu, mesmo que pisoteado, passar pelo desvario que praticamente destruiu o sistema político partidário brasileiro a partir de 2016.
Se é do PT a tarefa de liderar a reconstrução da esquerda no Brasil, antes ele precisa se reconstruir. O partido está embolorado, velho, correndo atrás da máquina. Qual é a proposta do PT para o Brasil? Um país democrático? Socialmente justo? Com igualdade de gênero? Antirracista? Sim, parece óbvio, mas em que condições se realiza isto? Postas de forma genérica, estas lutas dizem muito pouco à maioria das pessoas que batalham no cotidiano para sobreviver. A esquerda brasileira tem de voltar a falar de classe, das relações de trabalho. Tem de voltar a ensinar o que isto significa no capitalismo e como isto foi ressignificado na atual quadra do capitalismo neoliberal antidemocrático.
Para que se construa uma Frente Ampla, há necessidade de que a esquerda reconstitua o sentido da luta, sem colocar – como já fez algumas vezes, de maneira constrangedora – o universal (sinônimo de classes) de um lado e as lutas feministas, antirracistas, LGBTQIA+, antietaristas de outro. Há urgência em articular lutas sem reduzi-las umas às outras, numa espécie de nostalgia stalinista. Mas não basta os partidos e os movimentos constituírem uma frente ampla, superando o isolacionismo de cada uma das suas lutas. Isto pode até acontecer, mas é preciso que estas lutas façam sentido para a maioria da população brasileira, formada por trabalhadores, MEIs explorados, homens, mulheres, negros, brancos, cis, trans, héteros ou homo. Não é buscando apoio da centro-direita que esta frente terá êxito.
Não é gritando contra o aborto que os eleitores da direita votarão em uma Frente Ampla de esquerda e progressista. Não queiramos fazer, do nosso lado, aquilo que a direita faz muito melhor: ser cínica.
Se não temos uma utopia, se não temos um projeto pós-capitalista, trabalhemos com questões mais concretas e práticas do dia-a-dia. Não podemos ficar a reboque da extrema direita, como se ela fosse a dona dos corações e mentes dos brasileiros pobres. Como forças progressistas, não podemos ficar apenas tentando tirar a cabeça fora d’água para dizer que também somos cidadãos de bem. Neste momento, a direita pode ser a dona dos corações e mentes de muita gente, mas corações não são de pedra e mentes sempre foram mutantes. (Publicado por Sul 21)
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para artigos do autor.