Sancler acha que a esquina das ruas Adamosteu e Ferreira Braga é o centro do mundo. Não por ser o meio, equidistante dos pés de cada um que pisa sobre uma terra redonda, achatada nos polos e chata nas noites de domingo, mas por ser o lugar mais importante do mundo. Mais importante que os lugares importantes. Mais importante que os Estados Unidos, a Rússia, a China ou o Paraguai. Mais importante do seu mundo, que se resumia à sua cidade, ao seu bairro e, principalmente, àquela esquina em que, religiosamente, tomava sua primeira e última refeição de cada dia.
Nas manhãs, entre um gole do café pingado servido em copo grande, um naco de bolo de fubá e um pão na chapa com manteiga em excesso, assiste à cidade que acorda já com carros amontoados nas ruas e, frequentemente, fechando as esquinas do centro do mundo. A maioria das pessoas, de caras lavadas mas de expressões ainda denunciantes das camas há pouco deixadas.
Uns poucos, já com o mau humor típico do fim de um dia de medos, tensões, desgostos, frustrações, desilusões, esperas e até mesmo eventuais alegrias. Além dos barulhos dos carros e buzinas, gritos raivosos indecifráveis e um ou outro palavrão alto e claro faziam a trilha sonora do desjejum de Sancler no centro do mundo.
Trabalha perto dali. Sempre ansioso para voltar para seu centro do mundo. Na verdade, para voltar para o mundo que sente ser seu, bem diferente daquele do trabalho onde manipula papéis tediosos e obedece, submisso, a ordens dadas só para que os chefes, tão longe de seus mundos quanto ele, possam imaginar serem suas vidas menos ridículas do que realmente são.
Sancler só não volta melancólico para casa, porque antes de tomar seu banho e descansar à espera de mais um dia vazio, tem seu segundo momento no centro do mundo.
Toma a mesma mesa e cadeira, já tornada sua pelos garçons da padaria. Varia no jantar, apesar de ter seus pratos de preferência. Come e bebe lentamente, testemunhando a vida que passa pelo centro do mundo no dia que se vai.
Ônibus de gente suada, cansada e espremida fecha a esquina, gerando uma sinfonia de buzinas e gritos. Um taxista, mais ousado e menos paciente, manobra para superar o ônibus e vencer mais uns cinco metros de asfalto. Acaba batendo no ônibus e complicando ainda mais o nó no trânsito que já não transita no centro do mundo.
Do outro lado da rua, uma moça grita anunciando o ladrão que lhe arrancou a bolsa. O larápio corre seguido de perto por um grupo de justiceiros de ocasião que, uma vez o tendo derrubado ao chão, iniciam o linchamento sob os olhares indiferentes, raivosos e felizes das pessoas de bem que vão e vêm pelo centro do mundo naquele horário.
Na esquina oposta à da padaria, um pastor se esgoela num alto-falante para expulsar demônios e atrair fiéis. Na outra esquina, um casal deposita oferenda, cachaça e acende uma vela para algum santo. Jovens malvestidos passeiam descompromissadamente com seus cachorros que defecam e urinam pelos cantos do centro do mundo, indiferentes a pastores e macumbeiros.
Sancler nem liga mais para nada disso. Assiste com o mesmo entusiasmo e tédio de quem vê um filme de destruição na tv. Todo caos diante de seus olhos é, aos seus olhos, uma coisa só. Uma zona só. É só o mundo acontecendo. Do seu jeito desajeitado, torto, sem razão.
Vê ao celular, pela última vez no dia, as notícias do dia enquanto espera a sobremesa e a conta. Lê sobre acontecimentos espetaculares sem nenhum espanto. Sabe que tudo é só mais do mesmo. Ecos do que acontece ali, ao vivo, no centro do mundo, que é igual ao resto do mundo porque tem gente no mundo todo. E gente é desse jeito que é e não tem jeito.
Suspirou fundo e comeu o último pedaço de pudim, sua única alegria genuína do dia que termina ali, naquele fim de mundo.
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Ilustração: Mihai Cauli
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