“O objetivo das mentiras é fazer com que não acreditemos em nada”.  Um texto importante publicado na seção de “Crônicas Hiperbóreas” da revista espanhola Contexto 

Em janeiro, Donald Trump assumiu o cargo frequentemente referido, de maneira hiperbólica, como o de “primeiro líder mundial”. Ele se torna não apenas o primeiro presidente dos EUA condenado criminalmente, mas, sem dúvida, também o que mais mentiras já proferiu – superando até mesmo Nixon. Do que li ou do que entendi do que li, há três linhas principais de pensamento que explicam o que aconteceu. Uma delas é que, como nos bailes de salão, tudo é uma questão entre dois: o que ganha e o que perde. Outra é que o eleitorado (uma boa parte dele) foi enganado. A terceira é que o eleitorado (ou parte dele, etc.), é como Sterling Hayden em Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954): não se importa se Joan Crawford mente ou não, o que se quer é ouvir o que se deseja ouvir. 

Embora as três linhas de pensamento tenham algum grau de verdade, em uma proporção que o Partido Democrata terá que descobrir (e depois nos contar), o fato é que a verdade sempre teve pouco valor nos mercados da política. Adlai Stevenson II já perdeu em 1952 para Eisenhower, apesar de afirmar publicamente na campanha que “se os republicanos pararem de dizer mentiras sobre os democratas, nós pararemos de dizer a verdade sobre eles”. E aqui na Espanha, desde que Fernando VII declarou: “Marchemos francamente, e eu o primeiro, pela senda constitucional”, sabemos por experiência própria que a falsidade é inerente ao ofício de governar.1 Se provavelmente o pior rei da Espanha publicou aquele manifesto falacioso, é porque as classes dirigentes no mundo todo sentiram a necessidade de recorrer a outros argumentos, além dos clássicos baseados em sacerdotes e espadas, para se legitimarem. Foi aí que nasceu a opinião pública: a substituição da tocha e da lança pela imprensa como método de protesto e advertência ao poder. 

Sem sair do século XIX e das relações EUA-Reino da Espanha (um recorte temporal e espacial bastante reduzido em termos de história da humanidade), o que aqui chamamos de Guerra de Cuba foi uma colisão entre duas grandes mentiras. De um lado, uma potência média em ascensão, que não tinha nada a perder em um conflito regional, incitada por jornais que disfarçavam interesses de mercado como anticolonialismo. Do outro, um velho império em queda livre, que se deixou levar a uma guerra que sabia não poder vencer, empurrado pelo eterno patriotismo, sempre à espreita no corpo da imprensa espanhola, pronto para se manifestar a qualquer momento, embora nem sempre o faça, como a doença herpes. Em diferentes variantes, essa mesma característica esteve presente na essência e/ou circunstância dos momentos históricos posteriores entre os dois países, desde a bomba de Palomares até o trio das Azores. E, em todos esses episódios, nosso jornalismo mainstream nunca deixou de cumprir seu papel histórico de flautista de Hamelin. 

Mas este não é o momento de ficarmos olhando para o próprio umbigo, e sim de elevarmos o olhar para o que costuma ser chamado, não por acaso, de cenário internacional – afinal, é onde se encenam os espetáculos. O objetivo das mentiras não é apenas colocar no poder um palhaço maligno com uma arma no lugar de um zumbi que acreditávamos ser bem-intencionado, para que ambos façam praticamente a mesma coisa. Tampouco é nos convencer de que o branco é preto. Parafraseando Hannah Arendt mais uma vez: “se não se pode distinguir entre a verdade e a mentira, também não se pode distinguir entre o bem e o mal. Com pessoas assim, você pode fazer o que quiser”. Arendt dizia isso em referência aos nazistas, mas agora essa ideia vale para qualquer um – ainda mais em uma época em que parece que até Hitler virou comunista. 

Quando se chega ao ponto de ninguém acreditar em mais nada, é aí que as multinacionais se permitem abandonar sem pudor suas máscaras de empresas ecofriendly e defensoras da diversidade, máscaras essas que custaram tanto dinheiro (e tantas contorções mentais) para serem criadas. É também quando os Estados se sentem livres para violar descaradamente as normas internacionais de respeito que eles próprios estabeleceram. 

O jornal The Washington Post capturou isso perfeitamente, há cem anos, ao comentar a guerra hispano-americana, que foi, do ponto de vista internacional, um conflito pequeno ou médio. O editorial dizia: “Parece que uma nova consciência está surgindo em nós: um sentimento de força acompanhado de um novo apetite, um grande desejo de mostrar nosso poder. Ambição, interesse, sede de conquista territorial, orgulho, puro prazer em lutar – seja qual for o nome que demos a isso, estamos tomados por uma nova sensação. Enfrentamos um destino estranho. O sabor do império está em nossos lábios, como o gosto de sangue na selva”.  (Publicado por Ctxt)  

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Traduzido por: Eduardo Scaletsky
Ilustração: Mihai Cauli
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