É preciso refletir sobre o projeto político da esquerda
Analisar as expectativas e prever comportamentos e reações políticas da sociedade brasileira, principalmente das classes mais baixas e da classe média baixa, se tornou algo mais complexo. Em parte acho que isto se deve às transformações sociais que passamos nos últimos governos populares, onde houve uma pequena ascensão social e em parte por onde isto mais se concretizou, a esfera do consumo.
Boa parte também da explicitação e transmissão destas expectativas via mundo do trabalho se tornaram mais complexas por causa das próprias transformações que vêm ocorrendo. Sobre isto, alguns escritos recentes, dentre os quais destaco o do sociólogo Jessé Souza, “O Pobre de Direita” e o do cientista político André Singer, “A nova classe trabalhadora não está satisfeita…”, nos dão ricas e valiosas pistas da complexidade deste entendimento. Na verdade, estas coisas se entrelaçam. Aqui vão algumas reflexões.
O grande boom do mercado de trabalho nos primeiros anos do governo Lula, com o consequente aumento de renda disponível, o aumento real do salário mínimo e seu impacto principalmente no Nordeste brasileiro e a maior disponibilidade de crédito para o consumo naqueles anos provocaram uma espécie de euforia e sensação de ascensão social em grande parte da sociedade brasileira.
Com a crise, retardada inicialmente por medidas anticíclicas do governo, perdas de milhares de postos de trabalho, falta de crescimento da economia, desaparecimento de alguns setores econômicos (o setor naval do Rio de Janeiro é um exemplo claro disso) e proliferação da precarização do trabalho, esta sensação foi se desfazendo e provocando em várias camadas da sociedade um sentimento de revolta e indignação. Era de fato a crise se anunciando, com diferentes impactos em diferentes regiões do país.
Este momento de crise, aliado à grande campanha orquestrada pela elite econômica brasileira (campanhas acusando o governo do PT de corrupto), que de fato se incomodou com esta pequena ascensão, amalgamou uma espécie de repugnância de parcela da sociedade brasileira a tudo que estivesse desenhado como continuação desse processo dos governos do PT, e deu espaço político para o golpe comandado pelo Temer.
De lá pra cá, esta situação só se agravou. Várias reformas executadas desde o governo Temer aprofundaram esta precarização e o sentimento de que o mercado formal de trabalho e sua proteção (previdência) não eram mais suficientes para garantir nenhum futuro aos trabalhadores.
Soma-se a isto o sentimento de parte da sociedade – que achou que perdeu algo que já teria ganhado –, agravado pela manipulação midiática e das redes sociais. Esta parte da sociedade se transformou numa parcela altamente conservadora e agora não mais tem vergonha de assim se identificar. Ficou fácil dizer que se é de direita no Brasil.
Não desprezemos a importância da pauta conservadora dos costumes colocada pelas igrejas neopentecostais, manipuladas pelos grandes grupos de igrejas que se transformaram em verdadeiros “grupos econômicos”, que alimentam o confronto dos costumes e da política.
Por outro lado, um dos valores que passou a se difundir em uma boa parte da classe trabalhadora foi o empreendedorismo individual, transferindo o sucesso e a prosperidade a iniciativas individuais e capacidades pessoais, independentes de iniciativas de políticas públicas de Estado ou de projetos conduzidos ou reivindicados coletivamente.
Ou seja, cada um por si e o Estado contra todos.
A verdade é que não garantimos, e também não sei se em tão curto espaço de tempo poderíamos garantir, transformações estruturais na sociedade brasileira, capazes de mudar, por exemplo, salários e remuneração de entrada no mercado de trabalho, e trajetórias de ascensão pelo trabalho que pudessem dar alguma perspectiva de evolução e de futuro.
O que significa ser um jovem no Brasil com baixa escolaridade e necessidade de prover o seu sustento com uma baixa remuneração no mercado formal de trabalho, longas jornadas subordinadas a chefes e proprietários? O que significa ser um adulto no Brasil sem muita qualificação ou que perdeu seu trabalho qualificado numa certa idade?
Por que tantos trabalhadores de plataforma? Por que tanta gente sem nenhuma ou quase nenhuma proteção?
Não à toa também o ataque por gente interessada neste estado de coisas à possibilidade de acesso pela educação a mecanismos que pudessem propiciar uma melhor expectativa de futuro aos jovens.
Quase sete anos depois de governos que promoveram um verdadeiro desmonte das políticas públicas, tivemos um sopro de esperança na vitória quase pessoal do Lula, principalmente nas regiões onde a memória da melhoria de vida estava associada a ele e a seus governos.
A retomada e recuperação dos programas sociais tais como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Farmácia Popular e da política do aumento real do salário mínimo foram uma opção prioritária corretíssima, porém ao meu ver com os mesmos “invólucros” não ocasionaram o mesmo resultado em termos de reconhecimento, e se transformaram numa espécie de obrigação de qualquer governo, não mais em conquista da sociedade. A eficácia na geração de boas expectativas dos programas sociais não é mais a mesma, não causa mais o mesmo resultado na sociedade. Ninguém sabe ou não se impressiona mais se retiramos cerca de 24 mil pessoas da pobreza absoluta diariamente no ano de 2023. Ninguém se impressiona tanto mais com a retomada de um programa que leva moradia àqueles desprovidos de tal segurança. Não há mais um sentimento positivo quando se noticiam taxas de desemprego tão baixas.
Não há mais esta percepção na sociedade. Isso, além de tudo, virou obrigação.
Talvez porque a sociedade – ou uma boa parte dela – tenha ficado mais conservadora e individualista pelas próprias transformações que o processo social anterior engendrou.
No mundo do trabalho, o aumento do emprego formal não é mais virtuoso, até porque não transforma a estrutura salarial. Há ainda um grande exército de reserva que garante esta permanência de baixos salários e alta rotatividade. Cresce num ritmo muito maior a precarização através de plataformas e o estímulo a que os trabalhadores se sintam “empreendedores” que não têm que responder a chefe nenhum e que mandam nas suas jornadas. Doce ilusão.
Associe-se a isso o programa de restrição/ajuste fiscal que, em nome do ajuste da economia, principalmente reclamado pelo sistema financeiro, descuidou de regar algumas bases que garantiam nossa “governabilidade” sobre alguns eventos que ultimamente nos causaram alguns desgastes, vide a nossa baixa capacidade de “intervir” na questão dos preços da alimentação, na chamada inflação dos alimentos.
E também não adiantou dar vazão a nossas pautas de costumes na esfera do governo e das suas políticas públicas, quando deixamos, pela opção da contração de recursos, quase sem orçamento, ações que dão tanta coesão a nós e ao nosso discurso.
Não adiantou nem vai adiantar só dar notícias boas sobre o desempenho dos setores econômicos, que tende neste ano a diminuir, nem só tentar mostrar a recuperação de programas sociais que já viraram obrigação.
Mas nem tudo está perdido, até porque continuo acreditando nas firmes convicções do nosso líder e felizmente ele está bem. Talvez algumas pistas estejam nesta estratégia recente de “reaparecimento” dele, principalmente em novos programas que mexem com esta expectativa de futuro dos jovens, como no caso do pé de meia (não foi à toa o ataque a sua existência) e talvez também ele possa ousar e encomendar uma série de “relançamentos” sobre a questão da renda, com uma estratégia para garantir uma política de renda mínima.
Além de termos vários programas de transferência de renda no governo federal (só lembrando hoje em dia até pequenos municípios têm programas próprios), a estratégia de isenção do imposto de renda para uma boa parcela da população disponibiliza mais renda disponível para estas pessoas.
A meu ver, se fizer isto solto, o impacto do crédito positivo da medida ao governo é muito menor. Talvez pudéssemos envelopar tudo isso num grande esforço do governo de implantar uma “renda mínima”.
Não acredito que só a melhora na economia e a aposta de fazer as coisas acontecerem no último ano sejam suficientes para garantir uma reversão dessas expectativas.
O desgaste já está grande e pelas razões que já expus não acho que seja tão simples reverter.
O maior exemplo disso vem da observação que o desgaste político está muito grande na região Nordeste, onde o prestígio do Lula era quase inabalável e a memória do seu último governo, muito viva.
Não acreditemos em milagres. Eles nunca foram bons para nosso país. Enfim, se não temos mais tempo de conversar e refletir como antes, ainda assim temos que formular algo pelo nosso projeto político, pois é a garantia de que o povo, principalmente a parcela mais necessitada, continuará sendo vista e priorizada.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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