A submissão a processo criminal dos responsáveis pelos atos contra a democracia certamente é a melhor forma de limpar as águas de março do sangue

O mês recém-findo marcou o transcurso de duas efemérides históricas, as quais, embora se refiram a fatos que se deram em países e tempos distintos, relacionam-se estreitamente entre si; e que continuam a marcar de forma indelével a vida de dois povos – podendo até mesmo ditar seus futuros próximos.

Começando pelo fim: a primeira das datas referidas, 24 de março, assinala o 49º aniversário do golpe militar desfechado na Argentina em 1976 – instaurando a mais sanguinária ditadura militar do subcontinente, que veio a perdurar pelos sete anos seguintes. Os golpistas, na vã tentativa de justificar sua criminosa ascensão ao poder no vizinho país, batizaram seu intento de “processo de reorganização nacional” – mas este período restou historicamente conhecido pelo título que designou com fidelidade do que se tratava aquele odioso regime: “terrorismo de estado”.

Atentando-se ao sentido jurídico-político deste conceito – relativo à modalidade de poder estatal em que se submete a população civil como um todo ao uso arbitrário e incontrolado dos instrumentos de coerção, de parte dos governantes e seus asseclas, impondo à cidadania uma situação permanente e indeterminada de pavor e insegurança – é fácil concluir sua presença na Argentina daqueles tempos tremendos. Foi ali desde o início implantada uma política sistemática de extermínio, responsável pela morte e/ou desaparecimento forçado de nada menos do que 30.000 pessoas, mediante sequestros, prisões ilegais e torturas.

Para que se tenha ideia da dimensão exponencial destes crimes – não bastasse o número espantoso de vítimas – cabe lembrar que a população argentina na época era de aproximadamente 30 milhões de habitantes; donde resulta a relação de uma pessoa morta e/ou desaparecida para cada mil cidadãos! Ou seja: além do irreparável dano à vida dos vitimados diretamente, a enorme proporção numérica destes delitos acarretou, no meio social em que eles se inseriam – família, trabalho, escola, vizinhança –, o efeito de terror desejado por seus algozes.

E, além das já referidas, um número incalculável de outras graves violações a direitos humanos – da mesma forma, típicos crimes lesa-humanidade, tais como tortura, sequestro, lesões corporais, estupros, humilhações pessoais de toda ordem – foram perpetradas pelos beleguins do regime ditatorial, integrantes das forças armadas e policiais, além de apoiadores civis, e até mesmo criminosos comuns. O trabalho extraordinário e minucioso de reconstituição fática destas violências, empreendido depois da redemocratização da nação vizinha, durante as últimas décadas, tanto pela sociedade civil organizada quanto pelo sistema judicial, é bem conhecido, e alçou o país à condição de principal protagonista do processo de justiça de transição vivido no mundo a partir do fim do século passado.

Além dos indispensáveis e inegáveis registros científicos e históricos desta tarefa hercúlea e exemplar, cabe trazer igualmente o testemunho da arte – fiel à lição magistral do ministro Flávio Dino, em fala recente proferida em julgamento no STF, e segundo a qual “a arte é também fonte do direito” – invocando diversas obras produzidas por nossos vizinhos, que relatam episódios ocorridos então, como é o caso dos filmes “A História Oficial” e “O Segredo dos teus olhos”, cujo brilho, não por coincidência, foi reconhecido com a premiação do Oscar, tal como aconteceu, agora, com “Ainda estou aqui”, acerca da ditadura brasileira.

A tradicional mobilização popular feita anualmente naquela data – Dia da Memória, Verdade e Justiça –, neste ano atingiu patamar especial, com manifestações multitudinárias nas principais cidades argentinas – a começar por Buenos Aires, onde os manifestantes tomaram completamente a Praça e a Avenida de Maio, bem como as artérias adjacentes. Isto porque os atuais governantes, da formação política de ultradireita que assumiu o poder na última eleição presidencial, além de se dedicarem sistematicamente à implantação de seu programa, responsável pela destruição do que resta da economia local – colocando mais da metade da população abaixo da linha de pobreza –, buscam minimizar a responsabilidade dos militares argentinos pelos crimes que praticaram, reabilitando inclusive o nefasto “mito dos dois demônios”, com o qual tentam culpar as vítimas pelas barbaridades que sofreram.

Do lado de cá da fronteira, o último dia de março assinala, como é sabido, a eclosão do golpe militar que instaurou aquela que é considerada pelos estudiosos como a primeira “ditadura de segurança nacional”, que inspirou as demais que se seguiram na América do Sul: Argentina (1966/72); Uruguai (1973); Chile (1973); e novamente na Argentina, o “terrorismo de estado”, entre 1976 e 1983. Esta definição deve-se ao fato de que o regime ditatorial implantado então em nosso país, que perdurou pelos 21 anos seguintes, seguia escrupulosamente os ditames da ideologia criada pela direita militar francesa, no final da década de 1950, e depois aperfeiçoada nos EUA, no cenário da chamada “guerra fria”.

Convém lembrar que a doutrina da segurança nacional – que lamentavelmente ainda subjaz à formação dos militares e policiais brasileiros – estrutura-se fundamentalmente na construção discursiva de um sujeito antagônico, “o inimigo interno”, sujeito este identificado, à época, como o “subversivo”, ou o “terrorista” (como depois passou a ser o “marginal”, ou o “bandido”, ou ainda, “o vagabundo”). E, como o combate a este inimigo não consiste mais na guerra convencional – pois ele não é identificado claramente, antes está disperso, diluído entre a população em geral –, deve ser combatido permanentemente, por todos os meios, inclusive os não convencionais, e até mesmo ilegais.

Esta foi a base ideológica sobre a qual se construiu, desde os primeiros dias após a assunção do governo ilegítimo, a “comunidade de segurança e informação”, sistema montado mediante a articulação de diversos órgãos e estruturas estatais, para vigiar e reprimir os oponentes do regime – reais, potenciais ou imaginários. O resultado sinistro da atuação destes aparatos repressivos, antes apenas bem conhecido pelos estudiosos e pelas pessoas mais informadas, além, é claro, das vítimas e testemunhas, foi minuciosamente esquadrinhado e exposto à opinião pública graças ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), e das demais Comissões que a assessoraram – e que amplificaram os dados já levantados antes pela Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada em 1985, e pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, instituída em 2002. Estas duas últimas, aliás, desativadas ou esvaziadas pelo governo do Boçal, e felizmente recriadas pela atual gestão federal.

Uma síntese breve, mas elucidativa, dos danos irreparáveis causados, em todos os domínios da vida nacional, durante o regime militar, foi apresentada neste espaço, em artigo publicado em 16 de abril do ano passado, a partir de números levantados pelo jornalista gaúcho Luiz Cláudio Cunha, publicados no livro “1964: a ditadura civil-midiática-militar”, de Juremir Machado da Silva (“Entre os dois golpes de abril, tanto mar, tanto mar…”). Nunca é demais relembrar alguns deles: cerca de meio milhão de pessoas investigadas, das quais 200.000 foram detidas ou presas; 11.000 submetidas às Comissões de Inquérito (CGI’s) ou a IPM’s; 707 processos instaurados, perante a Justiça Militar, contra aproximadamente 6.000 cidadãos e cidadãs, acusados de prática de “crimes contra a segurança nacional”, dos quais cerca de 1.800 restaram condenados à prisão e, inclusive, quatro à morte, penas estas ao depois comutadas; três ministros do STF e 50 juízes cassados; o Congresso Nacional foi fechado três vezes, assim como ocorreu com sete Assembleias Legislativas; 500 parlamentares cassados, assim como 1.200 servidores públicos; 1.300 militares reformados compulsoriamente; 1.200 sindicatos postos sob intervenção; aproximadamente 10.000 brasileiros e brasileiras exilados e quase três centenas de estudantes expulsos.

A muito custo, e apesar de frustrações nas grandes mobilizações populares da década de 1980 – por “eleições diretas-já” e “anistia ampla, geral e irrestrita” –, há exatos quarenta anos, também no mês de março, os militares se retiraram à caserna, não sem antes erguerem obstáculos institucionais e legais à sua responsabilização pelos crimes praticados durante os governos ditatoriais. E reside aí, justamente, nesta imposição de limites ainda hoje vigentes, que dificultam, quando não impossibilitam a realização plena da justiça transicional – condição para a implantação efetiva da democracia – a origem da tutela a ela ainda imposta, de forma tácita, mas onipresente pelas forças armadas.

O que, felizmente, começou a mudar nos últimos dois anos, graças à reação bem sucedida das Cortes Superiores – sobretudo, a Suprema – às investidas e arreganhos do truculento ex-presidente e sua turba neofascista, antes, durante e depois da eleição na qual foi derrotado, em 2022.

São sinais alvissareiros destas mudanças alguns fatos ocorridos também neste mês de março, a começar pelo julgamento proferido pela 1ª. Turma do Supremo, a qual, por unanimidade, recebeu a denúncia oferecida pelo Procurador-Geral da República, à vista da minuciosa investigação procedida pela Polícia Federal, contra o Boçal e seus auxiliares mais diretos, entre os quais três Generais do Exército e um Almirante, pela prática inequívoca de atos caracterizadores de cinco gravíssimos delitos – a começar pela tentativa de golpe de estado e abolição do Estado de Direito.

A submissão a processo criminal dos principais responsáveis pela série de atos atentatórios contra a democracia – desencadeados pelos então governantes ainda antes do pleito eleitoral, continuados ao final do ano e que culminaram nos espantosos acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, com a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília – certamente é a melhor forma de limpar as águas de março do sangue das milhares de vítimas da ditadura militar, bem como purgá-las do lodo em que o país foi então chafurdado durante mais de duas décadas.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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