Os artistas são vagalumes na escuridão, iluminam histórias incríveis que ampliam horizontes. É o caso agora do singelo filme “Virgínia e Adelaide” de Jorge Furtado e Yasmin Thayná. Começa no distante ano de 1937, quando a socióloga Virgínia Bicudo busca análise em São Paulo com a psicanalista alemã Adelaide Koch. Uma analisanda negra se trata com uma analista judia, ambas vítimas de preconceitos racistas, de violências e crueldades. Nesse encontro de duas mulheres, numa situação íntima, com conversas privadas, foi sendo gestada uma relação com repercussões históricas. Virgínia viria a ser a primeira psicanalista brasileira, e dessa relação nasceu uma amizade vibrante que está no filme. Artistas como os dois cineastas trazem à luz muitas histórias, a começar pelo racismo e como a psicanálise, um tratamento quase só de poucos, adquire, através da arte, o poder de impactar a cultura e a sociedade.

Adelaide Koch nasceu em 1896 e formou-se médica em 1924 na Universidade de Berlim, Alemanha. Fez sua análise com Otto Fenichel e ingressou no Instituto de Psicanálise em 1929, tornando-se membro em 1934. Imigrou para o Brasil, diante da ascensão do nazismo, com seu esposo e filhos e foi a primeira analista didata da América Latina. Já Virgínia Bicudo foi uma de suas primeiras pacientes que participou da formação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Em 1955, decide ir estudar em Londres, especialmente sobre a psicanálise infantil, onde permaneceu por cinco anos e meio.

O que primeiro chama atenção no filme “Virgínia e Adelaide” é a forma como a artista Sophie Charlotte fala no papel de Adelaide Koch. Seu vocabulário de português era limitado, após um ano aqui no País, falando com um forte acento estrangeiro, difícil até de se entender. O som estranho do português foi criticado por uma senhora sentada próxima no cinema, por não entender direito. A Psicanálise tem como tema central o estranho que há em cada um, o estranho inconsciente. Instigante como a história pessoal tanto da analista – Adelaide – como da analisanda – Virgínia – uma judia e a outra negra tem aproximações quanto a serem desprezadas, atacadas, por serem uma judia e a outra negra. Todo filme é marcado pela história pessoal e a história social da dupla analítica. Aqui convém fazer um parêntesis sobre as pontes entre o individual e o social em cada ser humano.

Poucos temas são mais instigantes que pensar as articulações entre o indivíduo e a sociedade ou a psicologia individual e a psicologia social. O ser humano nasce numa sociedade, num grupo, numa família. Todo sujeito é produto de suas identificações, que envolvem outros – pais, irmãos, familiares, tempo, espaço, uma história que será individual e social. No famoso primeiro parágrafo do livro “Psicologia das Massas e análise do EU”, Sigmund Freud reflete sobre o individual e o social. Escreveu: “Na vida psíquica do indivíduo, o outro é, via de regra, considerado como modelo, como objeto e como adversário, e por isso a psicologia individual é também, de início, simultaneamente psicologia social, nesse sentido ampliado, mas inteiramente legítimo”. O capítulo VII do livro é sobre a Identificação, e é pelas identificações que o social – os outros – penetra no individual. A Grande Guerra, a Primeira Guerra Mundial, fez Freud e o mundo repensarem o ser humano e a humanidade como um todo. Além do que se começou a perceber que o homo não é só “sapiens”, mas é homo “demens” também, e essa é uma ferida narcisista que segue sendo difícil de aceitar.

Quem deseja ter uma ideia de como ocorrem os diálogos em psicanálise, especialmente como é importante escutar, poderá ter uma boa ideia ao assistir ao filme. A forma como conversam analista e analisando, a delicadeza e a importância da escuta, como sinalizar, perguntar, aos poucos se revela. O filme é sobre a psicanálise, o racismo, a potência de um vínculo, do quanto as conversas podem ser criativas e terapêuticas. É emocionante presenciar a história de duas mulheres pioneiras, tão inteligentes, sensíveis, pacienciosas no aprendizado.

Os diálogos do filme, que integram o teatro com o cinema, são muito bem construídos. As duas artistas crescem com o desenrolar do filme, que é uma aula de história, uma aula de psicanálise, uma aula de beleza e arte. Aplausos a toda a equipe de diretores, produtores, artistas, à equipe toda. Filme para ver e rever, um espetáculo de arte no qual se pode perceber como o individual e o social se conectam, como algumas pontes entre o sujeito e o social se estabelecem. O filme segue em cartaz na sua terceira semana, em dezenas de cidades brasileiras; aqui em Porto Alegre está na Casa de Cultura Mário Quintana. Aliás, estou indo rever o filme para aproveitar melhor cada diálogo, porque não é pouco o que se pode desfrutar do melhor filme que vi cuja temática gira em torno da psicanálise. O filme “Virgínia e Adelaide” ajuda a pensar não só a si próprio, como também estimula a busca de caminhos num mundo que segue sendo cruel e racista. Enfim, é um filme terapêutico.

(O filme continua em cartaz nos cinemas pela terceira semana, em 22 salas, de Manaus a Porto Alegre)

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Ilustração: Mihai Cauli
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