Grandiloquentes, mas tão frágeis quanto um rebento, sentindo-se desprotegido ou ameaçado, o ego corre para construir a couraça que garanta sua permanência. A defesa contra a invasão bárbara está logo ali, de acordo com os recursos de que disponham os necessitados.

I

Embora os condomínios fechados não tenham nem a dimensão territorial, nem a simbólica (ainda) dos países, em muitos aspectos possuem já a mesma configuração. Parece ser esse o seu destino manifesto. Desde a mais tenra idade, pareciam revelar sua vocação. E assim cresceram, prosperaram e foram se espalhando planeta afora. Hoje, em algumas cidades do Brasil, é como se já não houvesse mais espaço para a construção de residências que não estejam cercadas por muros e providas dos serviços que os condomínios ofertam. Na década de 1990, nos Estados Unidos, conta o historiador Cullen Murphy, “cerca de 3 milhões de unidades habitacionais… estavam localizadas dentro de condomínios fechados, que protegiam uma população de cerca de 8 milhões de pessoas”. Hoje, continua, “os condomínios fechados abrangem 14 milhões de unidades habitacionais” – um crescimento de 367% ao longo de pouco mais de três décadas.

Oito milhões de pessoas distribuídas por 3 milhões de unidades habitacionais significa 2,66 pessoas por unidade. Em 1990. Se se aplica a mesma proporção às 14 milhões de residências de hoje, o que se tem é uma população total de 37,2 milhões de pessoas. Se essa continha básica está mesmo correta, 11,4% da população estadunidense vive atualmente em condomínios fechados. E aumentando.

Como é usual no mundo próspero, são de todos os tipos e tamanhos, como qualquer outra mercadoria, erguidos para atender à mais variada gama de consumidores. Em Miami, o Indian Creek Village, com 89 lotes distribuídos por um território de 1,2 km², é quase que duas vezes e meia o tamanho do Vaticano e apenas uns 30% menor que o Principado de Mônaco. Lá residem ou têm residências (primeiras, segundas, terceiras residências…) alguns dos mais ilustres bilionários do planeta – gente como Jeff Bezos, o dono da Amazon que no final de junho privatizou por alguns dias a cidade de Veneza para a realização do seu casamento, Ivanka Trump, Jared Kuschner, Tom Brad e similares. No pequeno principado da costa francesa também reside gente famosa e fabulosamente rica. Mas, à diferença daquela pequena formação insular na Flórida onde se acomodam não mais que umas três centenas de moradores, Mônaco abriga nos seus 2,02 km² 39 mil pessoas – “uma das maiores densidades populacionais do mundo”.

A empresa de segurança privada que garante a tranquilidade dos moradores da ilhota na baía de Biscayne não será em nada diferente daquelas que controlam a distribuição de comida em Gaza pela ONG criada pelo exército de Netanyahu (ver artigo do dia 15 de junho passado). Um detalhe curioso é que “o sistema do radar de segurança perimetral” (controle das fronteiras) do Indian Creek Village foi “projetado pela empresa israelense Mago”. De modo que a equação se apresenta assim: uma empresa de segurança privada de Israel garante a paz e o gozo dos multibilionários na Flórida de Donald Trump, enquanto empresas de segurança privadas do país de Donald Trump vigiam a distribuição de alimentos para os famélicos de Gaza.

No Brasil, tanto quanto nos Estados Unidos, aumenta ano a ano o número daqueles que querem porque querem viver afastados da vida na cidade, protegidos por muros, encimados por arame farpado e câmeras de vigilância. Segundo o censo de 2022, havia 13.285.465 unidades habitacionais localizadas em condomínios, a grande maioria delas nos verticalizados (de apartamentos). Isso representava cerca de 12,4% de todas as residências do país – um índice muito semelhante ao do país de Trump. A curva, no entanto, pode estar se invertendo em favor dos ainda bastante minoritários condomínios horizontais (os que abrigam somente casas). Dentre as pouco mais de 13 milhões de unidades localizadas em qualquer tipo de condomínio, apenas 1,7 milhão estão nos horizontais – que cresceram nada menos que 76% de 2010 para cá.

E também no Brasil, como não poderia deixar de ser, há condomínios destinados aos muito ricos (quem sabe não tão bilionários quanto os moradores do Indian Creek Village, mas de todo modo muito endinheirados). No interior de São Paulo, a 112 quilômetros do centro da capital paulista, foi lançado em dezembro de 2007 o Fazenda Boa Vista, erguido numa área 10 vezes maior que o da ilha em Biscayne. Em nada menos que 12 milhões de metros quadrados, as 800 luxuosas residências têm entre outras tantas guloseimas para seu uso exclusivo e de seus convivas, campo de golfe, hípica e até um hotel 6 estrelas (da rede Fasano).

Claro que compradores de territórios exclusivos exigem, além das luxúrias como as do Fazenda Boa Vista, uma variada paleta de serviços. Não será necessária nenhuma singular perspicácia para saber que no alto dessa lista de exigências, tanto para os do topo quanto para os ofertados a faixas de renda menos abonadas, está a segurança, associada invariavelmente ao desejo de exclusividade, isolamento, privacidade. Protegidos por câmeras de vigilância eletrônica de ponta 25 horas por dia e corpos de polícia sob comando deles próprios – e quem sabe se não também sistemas de controle das fronteiras projetados por empresas israelenses.

Parte dos poderes antes exclusivos do Estado foram transformados em mercadoria, gerida e regulamentada por aqueles que a adquirem. Territórios onde o uso legítimo da força passa do Estado para as mãos dos que podem dirigir-se ao mercado para comprá-la. (Estima-se que só os Estados Unidos gastaram “160 bilhões de dólares com empresas de segurança privada” entre 2007 e 2012.) São como micro Estados, assemelhados a Mônaco ou ao Vaticano, mini países cercados e guardados como se fossem impérios – o que de alguma forma são, pois esse é o espírito que os alimenta, o das linhagens de sangue azul, de realezas, príncipes e barões nascidos em berços de ouro. Esse corpus de segurança é pelo menos tão bem treinado, bem remunerado e bem equipado quanto qualquer aparato policial do Estado.

À sombra dos muros que os protegem, supõe-se que seus privilegiados proprietários já não precisem dizer, e não dizem, “moro na cidade tal ou qual”, mas no condomínio Alpha ou Beta.

São, ao mesmo tempo, extensão e incorporação de um estilo de vida, de uma maneira de ver o mundo e se apropriar dele, material e espiritualmente – a exata prolongação de egos inflados.

O eu e, logo, os seus (filhas e filhos, esposas ou maridos, irmãs e irmãos, pais e mães…) acobertados pelo território comprado. Encerrados nas fronteiras de umas tantas fantasias e nos limites de suas posses. E para além das muralhas que os protegem, o mal, as iniquidades, a violência do outro. Lá fora. É mais ou menos assim que a própria ideia de país ou nação vai sendo redefinida no fabuloso universo do mundo próspero – e dos egos soterrados pela egolatria.

II

No interior de seus paraísos murados, distantes e separados da cidade onde o capital se reproduz, dão-se ao luxo de fingir que não existem mais nem miséria, nem violência – “da mesma maneira como a família do comandante de Auschwitz ignorava o fedor dos fornos crematórios… como se não estivessem lá, a poucos metros de distância da piscina onde seus filhos se divertiam durante o verão polonês.” (Ver A Brutalidade do Capitalismo – aqui e agora no TP de 6 de abril passado.)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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