“Os Estados Unidos, até há bem pouco tempo fator de ordem internacional, surgem cada vez com maior nitidez, como um elemento de desordem”. (Por Emmanuel Todd em Após o Império)

Parece puro nonsense (que, segundo o Houaiss é “frase…, dito, arrazoado etc., desprovido de significado ou coerência, absurdo, disparate”, tolice). Para defender a boa imagem e os direitos de Bolsonaro frente à Justiça do Brasil, Donald Trump inicia um ataque furibundo aos interesses comerciais brasileiros. Noutras palavras, para defender um réu que responde a processo no Supremo Tribunal Federal, o presidente norte-americano investe contra o país do próprio acusado. Por isso é necessário recorrer ao dicionário e explicitar o que diz. O disparate, o absurdo, a tolice, a ausência de sentido tomaram conta da cena. Por isso não é desarrazoado crer que essa é uma época propícia à paranoia – e ao medo, à sensação de que as normas que regulam a convivência entre os humanos, sem que jamais tenham sido inteiramente satisfatórias, estão se desfazendo como uma miragem no deserto, substituídas pelo arbítrio de indivíduos sem eira nem beira, atuando com o mesmo grau de impunidade concedida aos faraós e aos tiranos de províncias. E, ainda assim, a realidade, a todo momento, ultrapassa os limites das mais pessimistas das nossas profecias (ou delírios paranoicos).

É verdade que pouco menos de um semestre foi suficiente para entender o maniqueísmo interesseiro da psicologia dos que comandam o Império, o nível inédito de sua arrogância e o primarismo de suas encenações. O introito é invariavelmente destinado à exibição da musculatura, a reafirmação da virilidade, a comprovação do nível de testosterona do Imperador – ao menos aparentemente muito superior à dos seus acólitos. Foi assim desde os primeiros decretos – guiados não pelos manuais das ciências econômicas, mas pela pedagogia do chicote. Mas, o que se segue ao espalhafatoso anúncio de estratosféricas taxas sobre os produtos dos outros para supostamente reequilibrar a desfavorecida balança de comércio imperial? O inevitável recuo – ao invés de 100% ou 125%, 50% ou 25% e assim sucessivamente. Como se transações internacionais reproduzissem a lógica de dois pequenos proprietários rurais que sentados sobre o mourão do curral barganham o preço do rebanho.

Em seguida vêm os atos destinados à propagação da bravata, usualmente encarregados aos coadjuvantes de primeira, segunda, terceira linha, até que o maquinismo publicitário comece a produzir resultados. O presidente “está muito aborrecido com isso” – garantiu o mais eficaz produtor de fake news e testa de ferro do trumpismo. Steve Bannon estava se referindo ao processo movido contra Bolsonaro no STF por tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado de Direito – o conteúdo da coisa, no entanto, nada importa ao consigliere do Imperador. Ele sabe como é o funcionamento do mundo próspero e age de acordo com as leis que regem o universo da mercadoria. Por isso, aquele que (re)encarna a figura de inquisidor se trasveste de humanista para acusar a Justiça brasileira de “uma caça às bruxas”. E daí que os termos evidenciem graus elevados de incoerência ao mais elementar senso comum? A mensagem garante que eles lavam mais branco e, portanto, eles lavam mais branco. Compre-se, engula-se.

(Terminada a II Guerra Mundial, os caça-talentos americanos tratavam de limpar o passado de determinados nazistas para colocá-los a serviço dos Estados Unidos – “o fato incidental de o sujeito também ser um monstro não importava em nada…”. Os alemães chamavam esse processo de Persilschein ou Certificado Persil, um “termo que fazia referência a uma marca popular de sabão em pó que dizia ‘lava mais branco do que branco’. Quando você recebe esse certificado, você está limpo”, escreve Philipe Sands em Rota de Escape.)

“Ele está muito aborrecido com isso. E eu acredito que haverá severas sanções financeiras contra Moraes (o ministro do STF Alexandre de Moraes). Há dezenas de pessoas trabalhando nisso, tanto no Executivo quanto no Congresso, e veremos o resultado em algumas semanas”, anunciou o ideólogo numa entrevista publicada no último dia 8. Nem se passaram semanas, apenas uns poucos dias para que o vaticínio se cumprisse. As sanções de fato vieram, não em desfavor do ministro, mas contra o país. Detalhes diversionistas talvez, detalhes de qualquer modo. Semanas por dias, dias por semanas ou o que seja. “Esse cara não vai escapar impune”, sentenciou o guru trumpista. O cara é o citado ministro do STF – e aqui me ocorre uma dúvida opressiva: que diabos aconteceria se nas tempestuosas planícies do oeste americano um personagem de notória fama se referisse assim, de maneira tão espontânea, a um ministro da Suprema Corte daquele país? Sabe-se lá, mas é possível que em tão vastas paisagens o sujeito não saísse mesmo impune.

Tanto nos bons, quanto nos maus espetáculos circenses, ao protagonista cabe conduzir a ação no centro do picadeiro. No colossal picadeiro do circo romano, para não nos afastarmos tanto no tempo, a vida dos escravos tornados gladiadores era não mais que um dos elementos da encenação, menos importante que as feras capturadas nas florestas dos tristes trópicos. O imperador, enquanto isso, apenas assistia do seu espaço exclusivo nas arquibancadas até que, ao final do embate feroz, determinava com um gesto de mão aquele que deveria ser morto e quem poderia seguir vivo, aquele que se tornaria um privilegiado cidadão romano e quem seria deportado para os confins do Império.

Na terceira visita do primeiro-ministro israelense ao parceiro da Casa Branca, eles aventaram mais uma vez a ideia de expulsar os palestinos da Faixa de Gaza – “onde vivem há gerações”, lembra um repórter. Na primeira visita, em fevereiro, Trump, sem que ninguém esperasse, anunciou a ideia que provavelmente havia lhe ocorrido durante a noite anterior de realocar em países vizinhos os quase dois milhões de palestinos que ainda vivem onde eles e seus antepassados nasceram – para que, então, “os Estados Unidos pudessem assumir o território arrasado e transformá-lo na ‘Riviera do Oriente Médio’”. Não será necessário muito escrutínio para notar na proposta o tom de humor rasteiro tão próprio do presidente norte-americano – sem nos esquecermos de que o que parece um esquete cômico pode ser de fato uma decisão imperial. (Não tardou muito para que refugasse.) Pouco mais de dois meses depois, tratou de suavizá-la ligeiramente: eles assumiriam Gaza para transformá-la numa zona de liberdade sob o controle americano e apenas “com a possibilidade de deslocamento da população palestina” – como é sabido, o outro nome para esse tipo de operação é limpeza étnica.

Agora o tom de escárnio ficou por conta da psique muito mais sofisticada e perversa do ilustre visitante. Enquanto conversavam informalmente com os jornalistas presentes, esperando que o jantar chegasse à mesa, o primeiro-ministro de Israel fez a seguinte declaração:

“Estamos trabalhando com os EUA para encontrar países dispostos a concretizar o que sempre dizem: que querem dar aos palestinos um futuro melhor”.

Esse cinismo capaz de revolver os estômagos mais resistentes só é possível porque, desde o ataque do Hamas contra o território israelense em outubro de 2023, ninguém foi capaz de dizer um basta ao ilimitado arrebatamento de Netanyahu. O senhor da guerra, amparado no poderio do Império, seja sob controle de Republicanos, seja de Democratas, e na eficiência do aparato militar e de informação do país sob seu comando (há quase duas décadas, lembre-se), zomba de cada um de nós.

Em janeiro de 1942, parte da cúpula hitlerista se reuniu numa mansão às margens do lago Wannsee, em Berlim, para debater que destino dar aos judeus europeus. A reunião durou apenas 90 minutos – isso mesmo, o tempo de uma partida de futebol. E nela foram decididas as medidas para levar a cabo a Solução Final da Questão Judaica – e o termo parece portar uma certa solenidade. A expressão é soberbamente conhecida: Die Endlösung der Judenfrage – o extermínio sistemático e em escala industrial dos judeus europeus. Como se se tratasse apenas de uma medida administrativa, o que para eles de fato era. Ao contrário da troca de ideias entre Trump e Netanyahu em Washington para decidir o que fazer com os palestinos de Gaza, a Conferência de Wannsee, como ficou conhecida, foi um encontro ultrassecreto da qual participaram uma dezena e meia de altos funcionários do regime. Só ao final da guerra o horror de suas resoluções se tornou público. Os nazistas conheciam perfeitamente a natureza do que estavam decidindo ali. Tanto quanto o primeiro-ministro israelense e o presidente americano são conscientes da obscenidade de suas decisões sobre os palestinos. Mas não se importam. Enquanto saboreiam o banquete nos salões da Casa Branca, debatem, como se fosse o mais frugal dos assuntos familiares, a perpetração de uma limpeza étnica que se abateria sobre dois milhões de almas.

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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