I
Seria muito triste se a direita e suas variações (extrema, ultra, trumpista, bolsonarista…) desaparecessem, aqui ou em qualquer outro lugar, apesar dos riscos para a paz que sua simples existência implica, como mostra a história. Primeiro porque contrariaria o princípio básico da democracia representativa – e o que de menos ruim se poderia esperar ou desejar em nossa época (ver artigo anterior)? Claro que existem e sempre existirão os defensores dos privilégios dos mais ricos e dos mais poderosos, mesmo entre os indefesos e os despossuídos. Respeitando-se uma tradição nascida na revolução francesa, a esses se dá o nome de direita, ou ultradireita para o caso daqueles que defendem adicionalmente umas tantas políticas para arrochar a exploração e a selvageria do mundo da mercadoria. E se eles existem na sociedade, obviamente têm também o direito à defesa de seus valores e interesses, à representação no sistema político e à disputa pelo poder.
A segunda, mas não menos importante razão é que sem alguns desses sujeitos, geralmente os mais espertos da turma, a dosagem de humor disponível no Universo seria consideravelmente reduzida – como disse Aristóteles, o riso nos diferencia dos animais. Riríamos muito menos (um riso já tão inexoravelmente carregado de tristeza e desesperança). E não, não foi a mais célebre das recentes lives de um dos bolsonaros que fez disso uma evidência. Os exemplos vêm de longe e não há dúvidas de que o clã inteiro , assim como a trupe de apoiadores, são parte imperecível da história desse tipo de graça – todos se lembrarão da impressionante oficina de criatividade humorística que foram as manifestações contra a vitória e a posse de Lula na passagem de 2022 para 2023. Ainda que involuntária, essa produção hilariante não deve ser escanteada e o merecido crédito deixado de ser lançado na lista dos seus feitos – se são sempre generosos na fabricação da crueldade, do mal e da iniquidade, por justiça merecem também ser lembrados como extraordinários comediantes ou palhaços (sem depreciação alguma da profissão).
Ainda que a peça toda (a referida live) seja digna de autêntico encanto, há nela, como em toda boa obra ficcional, um ápice: a piscadela, aquele crucial movimento das pálpebras que pretende destacar no meio da oratória a perspicácia do emissor, seu poder e sua superioridade inquestionável. Acompanhada da ameaça que o filho do ex-presidente faz contra seus acusadores, a piscadela é imperecível. Fica indelevelmente pregada na memória pátria. E indica, entre outras coisas, além da já referida superioridade, a singular inteligência do orador. Naquela mensagem, gravada na intimidade do ambiente familiar, a adorável filha de cabelos louros e cacheados trazida à cena e ao calor do colo paterno, o filho emigrado do capitão provoca uma imediata inversão de sentido no imbroglio em que a família se meteu: de réu a promotor e a juiz, de fujão a acusador, de bicho acuado a implacável rei da selva. O efeito pretendido tem a validade de uma bula – ao menos para ele e seus fanáticos seguidores. No universo fabuloso (mitológico) onde existem e se reproduzem tem o estatuto de uma verdade primordial.
II
Quando o motorista do Uber, morador da capital federal, diz que Lula deveria estar atrás das grades, está na verdade manifestando também o desejo de uma inversão mágica da realidade – uma realidade cuja evidência o oprime e sufoca. Ele, no entanto, não está exprimindo todo o seu desejo, aquele que de fato revira de cabo a rabo sua percepção do mundo. O de que o atual presidente do país sofresse uma abrupta obliteração ou, ainda melhor, de que jamais tivesse existido. Ficaria tudo mais fácil com o mundo se adequando ao cerco de sua estreita imaginação. Como para ele Lula é a causa do desaparecimento daquele que, recém tornozelado, tem que seguir existindo, intocável como uma realidade congelada, ou como mito, seu oposto perfeito deve ser encarcerado, lançado para fora do real.
Jair Bolsonaro é, agora, um espectro, um espectro em vias de ser substituído – o mito não desaparece, ele reencarna, adquire novas formas ou nomes. (Mas pode também renascer, caso o ambiente se torne propício.) É natural que essa substituição seja dolorosa. Em princípio, todos somos capazes de conviver com o eventual desaparecimento daquilo que nos é próximo e querido e que forma parte da nossa identidade – seja qual for a maneira como organizamos e gerenciamos nossos afetos e nossas perdas. Mas, antes de nos tornarmos adultos, essa operação é muito mais complicada. Para aquele motorista de Uber da capital da República a obliteração do mito (do guia, do pai, do comandante – ou do capitão) implica num insuportável sentimento de desamparo, que ele definitivamente não está preparado para suportar. É, então, que ele decreta o apagamento da figura que representa a negatividade do seu ídolo. O culpado de sua dor insanável (lembre-se, ele ainda não se tornou um adulto, embora creia ser o mais sábio dos membros do conselho de anciãos) tem que ser eliminado. No mundo das fantasias paranoicas, a culpa tem que recair sobre aquele que, em sua representação da realidade, jogou a pá de cal sobre suas ilusões. Do que o motorista do Uber talvez não se dê conta é de que o espírito da fantasmagoria (os contornos e a energia do mito) ultrapassa em muito o desaparecimento para permanecer encarnado no seu próprio desejo, no rancor que alimenta sua fidelidade canina e ao mesmo tempo a fúria vingativa que o consome por dentro.
III
“Eu era simplesmente francesa, cidadã francesa, de nacionalidade francesa, nascida em Paris, ou seja, na França”. Essa é a descrição que Élizabeth Roudinesco faz de si própria para se referir à existência de uma suposta identidade nacional (ver O Eu Soberano). Para ela, portanto, todos os dados comprobatórios de sua identidade francesa estão inscritos como informações objetivas e imediatamente comprováveis no seu passaporte ou na sua Carte Nationale d’Identité (CNI). Nem mais, nem menos – o necessário e o suficiente. Para além daí impera a fantasmagoria. Mas se a tal da identidade nacional pode ser determinada de uma maneira tão enfática, de outra natureza são os vínculos que constroem outras tantas identidades. Aquela que, por exemplo, agrega os bolsonaristas em torno do ser que lhes dá nome é muitíssimas vezes mais complexa, real, profunda e perturbadora.
A proclamação do patriotismo mais arraigado é uma de suas normas identitárias e o país que eles adoram como a uma entidade totêmica é aquele que veem ao se olharem no espelho agasalhados pelo verde e amarelo. O país são eles, os outros, seus inimigos e, por consequência, os inimigos da pátria. Uma imagem tão simplificada da realidade que pode ser condensada na figura do capitão, um espectro sempre protegido ou encoberto por incontáveis camadas de verniz ideológico. Mesmo assim, seu poder é imenso. Umas tantas frases torpes, uns tantos esgares cheios de arrogância ou piscadelas prepotentes são suficientes para guiar a massa de seus seguidores. Mas se são torpes expõem, ao mesmo tempo, um tipo qualquer de apelo profundo – subvertendo o sentido da expressão de Jack London, poderíamos eventualmente chamá-lo também de apelo selvagem (sem nenhum juízo de valor). Ali, o que prevalece é a ética da sobrevivência a qualquer preço, a defesa do próprio território ou daquilo que supõem ser o seu país, as abstratas e autoritárias linhas de fronteira (creem fervorosamente que as coisas humanas podem ter fronteiras, serem cercadas e defendidas por soldados armados postados em paliçadas).
Há uma quase que fenomenal resiliência – como a do fiel seguidor brasiliense. E ela não deveria ser subestimada. Caso aquele no qual depositam sua devoção seja interditado pela Lei, podem e provavelmente transferirão seu afeto para alimentar alguma outra figura ou totem. Mas sem que se altere fundamentalmente as bases da sua religião. Esvaziados, circunscritos a um habitat familiar, visivelmente enfraquecidos como resultado da própria cretinice e dos limites (ou, se quiserem, das fronteiras) de sua imaginação, mesmo assim insistem. Ainda que seja necessário danificar ou destruir aquilo que julgam ser o seu Forte Apache. Como creem e professam, a família é a unidade básica da nação. Seu bastião, sua última trincheira, o território a ser defendido a qualquer preço.
Por último, mas…
Alguém tem dúvidas sobre a dimensão do estrilo dos membros do clã e dos mais achegados quando se iniciarem as deserções com novos pretendentes para o posto de mito?
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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