A dose de racionalidade das ações políticas despenca sucumbindo a pulsões abjetas – e um “exército de santos se coloca em marcha rumo à reconquista da salvação”.
O Brasil é dos bolsonaristas
Frente ao turbilhão de acusações e evidências contra os bolsonaristas e seus repetidos esforços para impedir a posse do presidente eleito, seria natural supor que sua força deveria estar minguando e rumando rapidamente para o inexpressivo e o desaparecimento. Mas, não é isso o que parece que está acontecendo. Resta, portanto, outra suposição: a de que há uma parte expressiva dos brasileiros que partilham um inamovível sentimento antidemocrático. Querem a volta da ditadura ou, seja como for, a constituição de um regime onde a única opinião política permitida seria a deles.
Para essa mentalidade que apenas tem crescido nos últimos anos, o país são eles e mais ninguém. Todos quantos queiram viver nesse território deveriam se submeter às suas crenças e às determinações do seu Senhor – as leis que devem reger a vida dos brasileiros, acima da própria Constituição, são as do Livro Sagrado na específica interpretação que fazem Dele. Para essa multidão de convictos a democracia é apenas um nome. As provas dos seus atos contra a vontade manifesta nas urnas são para eles irrelevantes. Não importa que existam. O direito de agir conforme suas conveniências atropelando os outros está legitimado pelos laços com o Divino. A pregação política associada à religião não é, portanto, de nenhum modo casual. Quando ocupam o plenário da Câmara ou do Senado com suas bíblias nas mãos é como se brandissem espadas de fogo destinadas a abater os hereges.
(Curiosamente, na mesma medida em que aumentam a frustração e o sentimento de derrota, aumenta também o desejo de romper as próprias leis da inteligibilidade. A partir daí vale o que disserem, por mais incoerente ou absurda que seja a fala.)
Democracia sem substância
Em Os Inimigos Íntimos da Democracia, Tzvetan Todorov conta que, na Bulgária stalinista, “… a palavra ‘liberdade’ era lícita e até valorizada, mas, como os outros ingredientes da propaganda oficial, servia para dissimular – ou preencher – uma ausência: à falta da coisa, tinha-se a palavra”. Nas últimas manifestações de apoio aos que tentaram o golpe contra a democracia, a palavra liberdade estampava as camisetas dos orgulhosos golpistas – rodeavam, por exemplo, a possível sucessora do capitão no comando do clã e esposa do agora inelegível ex-presidente. O hábito que não começou hoje não tem data para terminar. Ao contrário, se tornou método e ciência. Eles a usam cada vez mais e a cada dia melhor que no anterior.
(Não especificam a natureza dessa Liberdade – transformada numa espécie de totem –, exceto quando ela se refere à ação do mercado. Os fiéis seguidores dos Testamentos são também devotos defensores dos mandamentos liberais. E, nesse caso, a liberdade passa a ter contornos perfeitamente definidos: o direito dos mercadores para ordenar o mundo de acordo com as leis dos seus interesses particulares. É a liberdade irrestrita de agir dos donos do capital. Metamorfoseada numa dama solitária e abstrata, a liberdade se transforma em divindade – que atua invariavelmente a favor dos desígnios estabelecidos por aqueles que a manipulam. Moralistas enfezados, quando tratam dos negócios materiais, são mais avessos a qualquer ética do que o Diabo é da cruz – no mundo encantado da mercadoria, os dogmas afastam para bem longe as noções de decência e de bem-estar social e o que conta é somente o que funciona. E se o que funciona empobrecer milhões de seres humanos para, ao mesmo tempo, fazer crescer as fortunas de uns poucos, está muito bem.)
Antagonismo de sentidos
É cada vez mais constante entre o trumpismo e seus seguidores dos trópicos, a utilização de enunciados que se arrebentam contra seus conteúdos. Os fanáticos seguidores de um notório e assumido defensor da ditadura (e da tortura) elevam suas mãos aos céus glorificando a Liberdade, a Democracia e, simultaneamente, ao Deus único que os guia. O choque entre significante e significado soa como proposital e, em alguns casos, abusivamente proposital. Como se o emissor quisesse enfatizar a ideia de que o real não tem nenhuma importância, e se tem, deve ser abolido pela repetição incansável dos slogans. A verdade é o que decidem ser a verdade e o rótulo ou a embalagem substitui o conteúdo daquilo que contém. Basta a autoridade do emissor para legitimar a coisa.
O mecanismo se repete quando, no esforço para deslegitimar o STF e a democracia brasileira no processo contra Bolsonaro, Trump se refere ao ex-presidente como um “líder respeitado em todo o mundo durante o seu mandato”. Mesmo partindo de quem partiu, soa cômica a tentativa de transferir sua aura de autoridade (afinal, trata-se do Imperador) a um subordinado que mal consegue se manter de pé – amarrado a uma tornozeleira e ilhado dentro da própria casa, espera apenas que seu destino seja selado pela sentença de condenação para que um dos fiéis aliados ocupe para sempre seu lugar no palco, onde caiu impulsionado por uma onda excepcional. Porque muito se pode dizer do capitão Jair Bolsonaro com o objetivo de tentar engrandecer sua minúscula figura. Mas querer fazer dele “um líder respeitado em todo o mundo” é tão descabido que acaba apenas por evidenciar sua irrelevância.
A investidura do descomedimento
O que Trump deseja e está tentando retomar é o direito à exorbitância. Esse antigo anseio imperial, marca de registro a que só os impérios (e os ditadores) têm acesso, esteve por um tempo congelado pela existência de um contrapoder capaz de se opor, ainda que sob o preço do aniquilamento mútuo, ao desbordamento americano. Renascido após a queda do Muro de Berlim e à bancarrota da União Soviética, tinha, no entanto, a cara gulosa e rígida daqueles que as antecederam. A década de Ronald Reagan e Margareth Thatcher foi um tempo de terra arrasada para os trabalhadores e de enriquecimento brutal dos mais ricos – o mesmo que se deve esperar agora, alguns tons acima.
Mas a perspectiva desenhada no início dos anos 1980 já não dá conta de orientar os sonhos trumpistas. O Imperador ambiciona mais, numa época em que o mais natural seria se contentar com menos. É como se o menino mimado não tivesse tino suficiente para perceber que a contraforça não está mais nos Mísseis Balísticos Intercontinentais (MBIs) e sim, na Armada Comercial Chinesa. É claro que os MBIs e algumas das exclusivas armas imperiais são capazes de perfurar os bunkers mais profundos e inibir a arrogância de aiatolás e congêneres. Do mesmo modo como é evidente que o menino mimado percebe, sim, a natureza das forças contra as quais está se debatendo – por isso sua teimosia em manter o que não pode mais ser mantido soa tão desarrazoada.
A larga avenida aberta com a queda do Muro de lá para cá parece ter mudado de direção e o poderio do império soviético – que só podia existir sob a condição da destruição completa do inimigo, ao mesmo tempo que a de si próprio – foi substituído pelo espantoso crescimento do capitalismo controlado por um partido comunista. Mas como o menino mimado (de ego expandido e ilimitado) é também superpoderoso, ele esbraveja como Loki, o deus escandinavo “amoral, sem dignidade e semeador de desordem”. Precisa trapacear e estabelecer o caos para tentar recuperar as rédeas do mundo.
Se o Império está assustado, Donald Trump é a expressão arrogante dessa perplexidade. Quer desordenar o mundo na esperança de que a imensa sombra dos exércitos imperiais e sua capacidade de aniquilar o planeta possa reordená-lo – mas é também perfeitamente plausível que esteja a imaginar que apenas a aura de autoridade do Imperador seja suficiente para isso.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “Trump sob a ótica de Hannah Arendt: sinais de totalitarismo em uma democracia em erosão”, de Antonio Prado.