Bandung, 1955: O nascimento de um projeto coletivo
Em abril de 1955, na cidade de Bandung, na Indonésia, realizou-se um encontro histórico: 29 países asiáticos e africanos recém-independentes decidiram reunir-se sem a tutela das potências coloniais ou dos blocos da Guerra Fria. Foi a primeira vez que nações do chamado Terceiro Mundo se encontraram para falar em nome próprio e formular uma agenda internacional autônoma.
Ali se encontraram líderes visionários como Jawaharlal Nehru (Índia), Gamal Abdel Nasser (Egito), Sukarno (Indonésia), Josip Broz Tito (Iugoslávia) e Zhou Enlai (China). Em um mundo marcado pela disputa entre os Estados Unidos (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e pelo colonialismo ainda vivo na África e na Ásia, Bandung representou um grito de soberania.
Dessa conferência nasceram os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica — respeito à soberania, não agressão, não intervenção em assuntos internos, igualdade e benefício mútuo, e coexistência pacífica — que se tornaram a base do Movimento dos Não-Alinhados (1961) e, mais tarde, do Grupo dos 77 (G77) na Organização das Nações Unidas (ONU), que deu voz unificada aos países em desenvolvimento.
O legado de Bandung e o papel do G77
O G77, mesmo hoje, segue como o maior agrupamento de países em desenvolvimento dentro da ONU, com 134 membros. Ele continua a ser uma plataforma de negociação coletiva, sobretudo em temas como financiamento climático, comércio internacional e transferência de tecnologia. Porém, a relevância política que teve nas décadas de 1960 e 1970 diminuiu, diante de um mundo em que as decisões mais importantes são tomadas em arenas restritas — G7, G20 — e em instituições dominadas pelos países do Norte.
Ainda assim, a pauta de Bandung permanece viva. A defesa do multilateralismo, a luta contra o neocolonialismo e a busca por uma ordem econômica mais justa são mais atuais do que nunca.
China, Índia, África do Sul e o novo eixo do Sul Global
Se, em 1955, China e Índia eram potências emergentes em busca de reconstrução e reconhecimento, hoje são gigantes geopolíticos e econômicos. A China é a segunda maior economia do planeta e lidera iniciativas como a Belt and Road Initiative (BRI, na sigla em inglês), que conecta Ásia, África e América Latina por meio de infraestrutura e comércio. A Índia, por sua vez, tornou-se um polo tecnológico e demográfico — o país mais populoso do mundo — e busca maior projeção diplomática no G20 e no Conselho de Segurança da ONU.
O fato de Pequim e Nova Délhi serem atores centrais do BRICS (conjunto formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) é decisivo: juntas, essas duas nações representam mais de 2,8 bilhões de pessoas e um poder de negociação sem precedentes frente ao Norte Global. Esse protagonismo pressiona outros países, inclusive o Brasil e a África do Sul, a assumirem posições mais firmes em defesa de um multilateralismo genuíno, que vá além da retórica.
Durante décadas, a África foi tratada como periferia, espaço de intervenção, exploração e discursos piedosos vindos do Norte. Hoje, essa lógica não se sustenta. A União Africana conquistou assento permanente no G20 em 2023 e, agora, em 2025, o continente assume protagonismo ao sediar a cúpula do G20 na África do Sul, em novembro.
Um mundo em conflito
Setenta anos depois, o planeta volta a viver um clima de confronto global. Os Estados Unidos e seus aliados invocam a “ordem internacional baseada em regras”, mas são os primeiros a violá-la, apoiando guerras genocidas, impondo sanções unilaterais que punem populações inteiras e interferindo na soberania de países que não se alinham aos seus interesses estratégicos.
Nesse cenário, reviver o espírito de Bandung é mais que um exercício de memória. É um ato de resistência. Representa a recusa em aceitar um mundo governado por ameaças militares e financeiras, e a afirmação de que o Sul Global deve ser protagonista na construção de uma nova ordem multipolar.
A resposta chinesa: a Iniciativa de Governança Global
Na China, em Tianjin, no dia primeiro de setembro, durante a reunião da Organização de Cooperação de Xangai Plus, o presidente Xi Jinping apresentou a Iniciativa de Governança Global (GGI, na sigla em inglês). Em discurso direto, afirmou:
“Espero trabalhar com todos os países por um sistema de governança global mais justo e equitativo e avançar em direção a uma comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade.”
Xi lançou uma proposta ancorada em cinco princípios centrais: igualdade soberana, respeito ao Estado de Direito internacional, multilateralismo, desenvolvimento e ações reais centrados nas pessoas – ideias construtivas que ressoam com a comunidade internacional e se alinham com os propósitos da Carta da ONU.
A apresentação da GGI não ocorreu em qualquer data. Xi Jinping falou em Tianjin no mesmo momento em que 26 chefes de Estado estavam na China para participar das comemorações dos 80 anos da vitória sobre o fascismo. O simbolismo é poderoso. Ao mesmo tempo em que se rememora a derrota das trevas do século XX, a China propõe um novo horizonte para o século XXI. É como se Pequim dissesse: a luta pela liberdade e pela paz continua, agora em um terreno mais complexo, marcado por guerras comerciais e pela ameaça climática.
Brasil, BRICS e a nova agenda global
O Brasil está em posição estratégica para participar de forma ativa desse movimento de construção de uma proposta para uma nova era. Em 2025, o país preside os BRICS ampliados, que agora representam mais de 40% da população mundial e quase um terço do Produto Interno Bruto (PIB) global, e prepara a propalada Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Clima – COP-30 – em outubro, em Belém, onde o debate sobre clima e desenvolvimento estará no centro da atenção mundial. Pouco antes, ainda em setembro, o presidente Lula abrirá a Assembleia Geral das Nações Unidas que será palco de um novo embate sobre reformas nas instituições internacionais, e a Cúpula do G20 em Johanesburgo, em novembro, colocará a África, pela primeira vez, no centro do debate sobre governança global.
Esta tríplice agenda — ONU, COP-30, G20 — oferece uma oportunidade rara de fazer convergir demandas históricas: financiamento climático, combate à fome, transição energética, acesso universal à tecnologia e reforma das instituições financeiras internacionais.
Um chamado à liderança do Sul Global
Não basta celebrar Bandung. É hora de atualizar e radicalizar seu espírito. O Sul Global precisa se unir para dizer “não” às guerras de agressão, “não” ao confisco de ativos soberanos, “não” às sanções que violam o direito internacional.
Ou os países do Sul Global tomam para si a condução de seu destino, ou continuarão pagando o preço das aventuras imperiais alheias. O século XXI não pode repetir o século XX em sua lógica de dominação. Bandung foi o ponto de partida; agora é o momento de transformar aquela semente em um projeto político de emancipação real, capaz de moldar o futuro com base em paz, justiça e cooperação.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Uma nova ordem global?”, de Maurício Rands.