O cadáver ainda tremia em espasmos quando o policial chegou. O cheiro de pólvora branca não deixava dúvidas de que o disparo acabara de acontecer. Chegasse uns segundos antes e, talvez, o policial tivesse escutado o estampido. Ao lado do defunto, um sujeito engravatado segurava um revólver ainda fumegante.
Todos estavam em silêncio e havia nos olhares e retorções dos rostos, mais expressão de chateação do que de espanto, medo ou horror. Um ou outro demonstrava nojo com a discrição que normalmente se tem em jantares granfinos. Tirando a sisudez do ambiente de repartição pública, aquelas pessoas comporiam perfeitamente o elenco de um daqueles jantares da alta sociedade.
“Foi o senhor?”, perguntou o policial dirigindo-se ao sujeito com a arma na mão. Ele confirmou com um movimento de cabeça. “E o senhor tem os documentos?”, emendou o policial. O homem tirou do bolso do paletó uma carteira e um envelope recheado de papéis. O policial se pôs a examiná-los com ar de minúcia. “Sim, parece tudo ordem. Está tudo correto, deputado”, disse o policial devolvendo carteira e papéis.
“Mas quem vai tirar isso daí? Não é correto isso ficar aí atrapalhando a passagem. Quase sujou o meu vestido!”, exclamou a senhora de óculos finos pousados a meio nariz, que lhe faziam olhar com a cabeça erguida em um quase involuntário ar de arrogância. “Não é conosco”, respondeu o policial. “Como se trata de um indivíduo que pertencia ao deputado, o corpo também pertence a ele.”.
“Afe!…”, inconformou-se a madame. “Esse preto estirado aí está me dando náuseas”. “Não se fala assim Elizabeth, o correto é afrodescendente”, disse com voz calma e pedante um homem de cabelos milimetricamente penteados. “Ah, Pedro Américo, você é tão moderado!…”, respondeu Elisabeth. “A moderação é essencial para civilizarmos esse nosso mundo, Elisabeth”.
“Deputado, se me permite, por que atirou no seu colaborador?”, perguntou o policial, forçando maciez na voz para não parecer inquisidor. “Perfeitamente! Ele me ofendeu”. “Mas… ofendeu como, exatamente?”.
“Com o olhar. Se ele te olhasse como me olhou, certamente teria lhe dado umas pancadas, como vocês sempre fazem. Vocês chamam isso de desacato, não? Pois bem, eu não tenho mais idade para bater em ninguém e não seria correto eu correr o risco de quebrar algum móvel por causa de uma briga. Tenho uma arma, graças ao bom Deus! E a lei está do meu lado….”.
“Amém!”, interrompeu o policial.
“Além do mais, ele era meu empregado, a lei também é clara. Posso fazer dele o que eu quiser porque eu paguei por isso. Fora minha imunidade”, continuou o deputado, defendendo-se com esforço para parecer que não se rebaixava a dar satisfações a um simples policial.
“O correto, deputado, é colaborador. Empregado é um termo humilhante e devemos respeitar até mesmo essa gente.”
“Ah, Pedro Américo!… Está bem, co-la-bo-ra-dor!… Vocês, moderados, no fundo, querem nos impor uma ditadura! Começa assim, daqui a um tempo não poderemos mais matar nem escravizar ninguém! Mas, tudo bem, se é o que querem, então está bem, colaborador!”.
“Assim é bem melhor, deputado. Não custa nada agir corretamente”.
“Mas, deputado, vais ou não vais tirar essa coisa aí do chão?”, perguntou Elisabeth sem disfarçar o asco que sentia. “Claro, madame! Vou mandar outro empre… colaborador retirar isso daí.”.
“E, deputado, não se esqueça de lembrar a seu colaborador para descartar da maneira correta para não prejudicar o meio ambiente e, de preferência, limpar esse sangue com produtos veganos, é o correto, deputado”.
“Claro, Pedro Américo, claro! Sejamos corretos…”.
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Ilustração: Mihai Cauli
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