Entre os daquela espécie, encontros nunca são apenas encontros. Há sempre algo por detrás. Um confronto silencioso. Naquele encontro havia cadeiras confortáveis, acepipes (que faziam questão absoluta de chamar de acepipes) e serviçais monossilábicos oferecendo coisas de beber. Tudo muito refinado. Muito limpo. Muito organizado. Muito planejado para mostrar o muito que aquela gente tem.

Gomes não era dali. Mas queria ser. Ao menos naquele momento tinha de ser. Precisava do apoio daquela gente. Do dinheiro daquela gente. Do jeito estranho e mágico que as portas se abriam quando aquela gente estava por trás. Estar por trás era o jeito daquela gente agir, mas precisavam sempre de alguém à frente. De quem aparecesse e fizesse o que queriam como se não quisessem, como se não existissem. Gomes queria ser esse sujeito de frente. Queria aparecer para o mundo. Parecer que manda enquanto é mandado. Naquela selva de aparências, Gomes era candidato a aparecer como candidato.

A briga eleitoral não é fácil. Gomes sabe disso. É estudado. Inteligente. Esperto. Tão estudado, inteligente e esperto que sabe que nada disso conta muito. O que vale é dinheiro e aquela gente por trás que faz as coisas acontecerem. Estava nervoso. Comeu polidamente. Bebeu só o suficiente para parecer que não tinha medo de beber. O momento de recepção acabou rápido, como que para deixar claro que os dali não são de perder tempo. Atendendo a um gesto sutil, serviçais puseram-se a convidar os participantes a ocuparem seus lugares na grande mesa de reuniões. Gomes foi posto em lugar de destaque, como se fosse alguém importante.

Após uns poucos salamaleques, o anfitrião introduziu Gomes como se apresentasse um amigo. Aquela intimidade simulada seria até constrangedora se não fosse parte do ritual daquele tipo de reunião. Todos sabiam que não era coisa de afeto, mas o tipo de respeito que o sacerdote dispensa só animal antes do sacrifício. Apresentação feita, passou ao que importava: política.

Gomes se esforçava para prestar atenção, mas não conseguia. Não sabia se por nervosismo ou cisma, mas só conseguia prestar atenção à boca do anfitrião. Uma bocarra saliventa. Não importava que movimento os lábios fizessem, não lhe saíam dos cantos da boca duas poças de saliva pastosa. Volta e meia, um fio de baba insistia em agarrar-se aos lábios, unindo-os mesmo com a boca aberta ao ponto de se poder ver suas amígdalas ao fundo. Apenas uma palavra ou outra era percebida pela mente distraída de Gomes: “Limite de gastos, povo, impostos, descontrole, direita”. Não chegavam a formar um discurso, mas um amontoado de palavras soltas saídas de um barril de saliva.

Foi interrompido por outro ilustre membro daquele clube. Queria fazer alguns “apontamentos”. Gomes também tentou, sem sucesso, prestar atenção. A boca deste era seca, normal. Anormal era sua pelugem. Havia fios volumosos de cabelo que pareciam lhe entupir as narinas. O mesmo nas orelhas, como se lhe tivessem enfiado espanadores ouvidos a dentro. “Privilégios, subsídios, exportações” completavam o rol de palavras soltas na mente de Gomes que só tinha olhos e ideias para babas e pelos.

Foi de súbito interpelado. “O que pensa disso, Gomes?”, disparou o anfitrião. Seu coração gelou. Tinha a certeza de estampar no rosto um rubor que denunciava sua insegurança. Todos o olhavam. Esperavam palavras dignas de seu porta-voz político. Arriscou: “corte de gastos!”, disse pausadamente, mas com voz firme.

Os convivas entreolharam-se. Cabeças balançavam afirmativamente, como quem dissesse: “muito bem! Isso!”. O pipoco de uma palma tímida ao fundo provocou aplausos efusivos. Estava escolhido o candidato.

Gomes respirou aliviado. Sorriu largamente e agradeceu comovida e humildemente. Mas mesmo em êxtase, sua mente não deixava de pensar naquela boca embabescida e naqueles orifícios peludos.

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Ilustração: Mihai Cauli
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