Um país financeirizado
O Brasil de 2025 vive uma ilusão perigosa. A inflação está sob controle, o PIB cresce timidamente e o desemprego segue em queda. Mas por trás dessa aparência de normalidade, a desigualdade resiste com ferocidade. Segundo o IBGE, o 1% mais rico concentra quase um terço de toda a renda nacional, enquanto 40% da força de trabalho permanece na informalidade.
O problema não é apenas econômico, é estrutural. O país consolidou uma forma financeira de capitalismo – uma economia comandada por rentistas, onde o crédito, a dívida e os juros definem quem sobe e quem desce na escala social. É a revanche da financeirização: o capital sem fábrica, o lucro sem trabalho, o poder sem voto.
O que é a financeirização – e por que ela importa
A financeirização é mais do que a expansão do sistema financeiro. É a transformação de toda a economia – e até da vida cotidiana – segundo a lógica do dinheiro que se multiplica sozinho.
Empresas produzem menos e especulam mais. Famílias trocam poupança por endividamento. Governos priorizam o “superávit primário” para acalmar os mercados, sacrificando o investimento público. E as próprias políticas sociais passam a ser intermediadas por bancos, fundos e fintechs que lucram sobre cada transação.
Como mostram autores como Maria da Conceição Tavares (1997), José Carlos Braga (2013) e Gerald Epstein (2005), essa mutação altera o núcleo da acumulação capitalista: o ganho não vem mais da produção de bens e serviços, mas da valorização de ativos financeiros.
As engrenagens da desigualdade moderna
A financeirização reproduz a desigualdade por múltiplas vias – silenciosas, sofisticadas e persistentes.
O Estado como refém dos rentistas
A dívida pública funciona como um dreno permanente de recursos. O orçamento federal destina quase metade de suas despesas ao pagamento de juros e amortizações. Essa engrenagem transforma a política fiscal em mecanismo de transferência direta da renda nacional para o topo. A retórica da “responsabilidade fiscal” esconde a irresponsabilidade social de manter o país aprisionado à renda financeira.
O crédito como substituto da cidadania
No Brasil, a financeirização do cotidiano é brutal. Bancos e fintechs transformaram o acesso a bens básicos em contratos de dívida. Cartões, consignados, crédito pessoal e “pix parcelado” alimentam a falsa sensação de inclusão — uma cidadania mediada por juros. O endividamento, vendido como liberdade, é na verdade o novo instrumento de dominação.
A financeirização das políticas sociais
Mesmo programas públicos entram na lógica do lucro. Bancos privados administram pagamentos de benefícios, plataformas digitais intermediam transferências e fundos de investimento compram dívidas de estados e municípios. A política pública torna-se produto financeiro; a pobreza, oportunidade de mercado.
O trabalho financeirizado
Empresas priorizam dividendos em vez de salários. A terceirização e a “pejotização” são justificadas em nome da eficiência. O capital se afasta da produção e se refugia no circuito especulativo. Como sintetiza Stiglitz (2019), “o capitalismo perdeu o emprego como medida de sucesso”.
A pobreza que não desaparece
A financeirização cria o paradoxo brasileiro: reduz a pobreza sem diminuir a desigualdade. O crédito amplia o consumo, mas também endivida as famílias. O acesso formal à bancarização mascara a precariedade da renda real.
Os números confirmam: a renda média do trabalhador cresce lentamente, mas o patrimônio dos 10% mais ricos dispara com ganhos de juros e aplicações. Em 2025, o número de brasileiros negativados voltou a ultrapassar 70 milhões. O sistema financeiro lucra com a inadimplência, convertendo sofrimento em ativo rentável.
Fernando Nogueira da Costa (2024) resume com precisão: “a financeirização diminui a pobreza, mas não a desigualdade; a desfinanceirização aumenta ambas”. O dilema é real – e demonstra a necessidade de repensar a própria arquitetura do capitalismo brasileiro.
O discurso da meritocracia: a ideologia da dívida
Nenhum sistema sobrevive sem narrativa. A financeirização encontrou a sua: a meritocracia.
A mídia e o mercado repetem o mantra de que o sucesso depende de esforço individual, ignorando que o ponto de partida é desigual. O cidadão endividado é apresentado como irresponsável, não como vítima de um sistema que o empurra para o crédito caro. O empresário que especula é chamado de “empreendedor”. O investidor é exaltado como “produtivo”, mesmo quando apenas coleciona rendas passivas.
Essa inversão moral, que separa “vencedores” e “fracassados”, legitima o rentismo e neutraliza a crítica social. A dívida torna-se instrumento de disciplina: o medo de perder o crédito substitui o medo de perder o emprego. É o novo contrato social invisível.
A mídia e o apagamento do conflito
Os grandes meios de comunicação desempenham papel central na naturalização da financeirização.
Os telejornais celebram “lucros recordes dos bancos” como sinal de solidez econômica. A elevação da taxa Selic é apresentada como “necessária para conter a inflação”, sem jamais mencionar o impacto sobre o custo do crédito e o endividamento das famílias.
A imprensa financeira opera como correia de transmissão da ideologia do mercado. É o discurso da neutralidade que legitima o privilégio. Quando o governo tenta reduzir juros, a manchete é “intervenção política”. Quando o lucro bancário explode, é “eficiência”.
Essa hegemonia narrativa consolida o que Susan Strange (1996) chamou de “poder estrutural” – o domínio de quem define as regras, os conceitos e até o vocabulário do debate econômico.
Caminhos para desfinanceirizar o futuro
Enfrentar a desigualdade brasileira exige atacar o coração do sistema. Crescimento econômico é necessário, mas insuficiente enquanto o modelo for rentista. O país precisa reconquistar o controle social sobre as finanças.
Algumas direções são possíveis:
- Reforma tributária progressiva – tributação de lucros, dividendos e grandes fortunas.
- Regulação efetiva do crédito e dos juros – fim dos spreads abusivos e dos empréstimos predatórios.
- Reorientação do gasto público – priorizar investimento produtivo e social em vez do serviço da dívida.
- Fortalecimento dos bancos públicos – BNDES e Caixa Econômica como instrumentos de desenvolvimento.
- Criação de finanças solidárias e comunitárias – moedas locais, bancos populares, cooperativas de crédito.
- Educação econômica crítica – romper com o discurso da meritocracia e da culpabilização individual.
O império da abstração
A financeirização é o império da abstração – o domínio de cifras sobre vidas. Ela transforma tempo em juros, esperança em ativo, solidariedade em risco.
Enquanto a política se submeter ao medo do mercado, a desigualdade continuará sendo o preço pago pela estabilidade aparente. O Brasil precisa recuperar a ousadia de discutir o essencial: quem se beneficia do atual sistema e quem paga a conta.
A revanche da financeirização não é inevitável. Ela é o produto de escolhas políticas, e, portanto, pode ser revertida. Mas isso exige muita coragem e ousadia para desmontar o mito de que o dinheiro é neutro e o mercado é sábio.
Desfinanceirizar o Brasil é, no fundo, devolver à sociedade o poder de decidir o que vale – e o que não tem preço.
Referências:
Braga, José Carlos. Por uma economia política da financeirização. Campinas: IE/Unicamp, 2013.
Costa, Fernando Nogueira da. Os impactos da financeirização e da desfinanceirização. Entrevista especial, Instituto Humanitas Unisinos, 2024.
Epstein, Gerald A. Financialization and the World Economy. Cheltenham: Edward Elgar, 2005.
Hudson, Michael. Killing the Host: How Financial Parasites and Debt Bondage Destroy the Global Economy. Dresden: ISLET, 2015.
Stiglitz, Joseph E. People, Power, and Profits: Progressive Capitalism for an Age of Discontent. Nova York: W.W. Norton, 2019.
Strange, Susan. The Retreat of the State: The Diffusion of Power in the World Economy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
Tavares, Maria da Conceição. A retomada da hegemonia norte-americana. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Os lobbies poderosos”, de Marcos Grillo.